18/01/2008

Mi(ni)stérios

Na Argélia existem o Ministério dos Recursos Hídricos e o Ministério dos Assuntos Religiosos. Por motivos opostos, nenhum deles deve ter tarefa fácil.

07/01/2008

Coup d'état

Como não permitíamos aos condutores virar à esquerda no cruzamento, estes tinham que continuar em frente e inverter a marcha na rotunda do Lavradio, quatro quilómetros à frente, ou então virar à esquerda num outro cruzamento antes dessa rotunda e embrenhar-se nas ruas estreitas do Barreiro. Muitos condutores tentavam a sorte: perguntavam-nos se os podíamos deixar passar porque “era só para ir ao Centro de Saúde” ou “o Modelo é já ali”. E, de facto, o Centro de Saúde e o Modelo eram já ali, mas os trabalhos que realizávamos no cruzamento e a estratégia de segurança que adoptáramos impediam o fluxo de tráfego naquele sentido. Mais do que acompanhar o trabalho, servíamos de polícias sinaleiros e informávamos os condutores que seguissem no sentido sul-norte e ali quisessem virar para oeste da grande volta que tinham de dar.

A não ser, claro, que pertencessem à comitiva de figuras de estado que se deslocava, para uma solene cerimónia, às instalações de uma fábrica daquele concelho onde iria começar a ser produzida a viatura blindada sucessora da famosa Chaimite. Tínhamos sido avisados com antecedência de que alguns ministros, incluindo o Primeiro, passariam pela obra: deveríamos deixar passar os dispendiosos carros pretos de vidros fumados com altas patentes militares fardadas ou senhores de fato e gravata lá dentro. Por isso, as pessoas que não iam fardadas ou de fato nem conduziam dispendiosos carros pretos, vendo os carros da comitiva a virar à esquerda no cruzamento, coisa que lhes estava vedada, indignavam-se e barafustavam connosco porque, na sua opinião, o colete e capacete que usávamos nos tornavam responsáveis. Frases como “Isto só neste país” e “Estamos mesmo no terceiro mundo”, devidamente coloridas com insultos e palavrões, foram o prato do dia. Foi sem dúvida o dia em que mais nomes me chamaram, e eu tenho uma data de alcunhas.


Tamanrasset estava impossível no dia em que Abdelaziz Bouteflika, o presidente da Argélia, a veio visitar. A avenida que recebe quem entra na cidade vindo do sul estava barrada pela polícia, que indicava a única alternativa possível de circulação: virar à direita e entrar num beco de terra batida. Foi o que tive que fazer quando regressava da obra rumo ao estaleiro de Tamanrasset, percurso que obriga a atravessar completamente a cidade. O beco curvava à esquerda e conduzia novamente a uma rua alcatroada, que estava também fechada por polícias. As luvas brancas dos agentes apontaram-me o caminho a seguir, que era igualmente em terra batida: um beco que seguia em frente no outro lado da rua. Esta cena repetiu-se várias vezes.

Em Tamanrasset, apenas as artérias principais estão alcatroadas, e é por essas que costumamos andar. As ruas secundárias são todas muito parecidas: têm piso de terra, são ladeadas por paredes castanhas e cinzentas sem pintura e levam apenas a bairros residenciais que conheço mal mas que se ligam sempre entre si. Ao ser obrigado a enveredar pelos becos, depressa me perdi. Sempre que encontrava uma rua pavimentada, era obrigado a sair pela polícia, que tinha invadido a cidade por completo. Quando me fartei de procurar caminhos possíveis, comecei a perguntar aos polícias por onde devia ir para chegar ao sítio que queria. Nenhum dos que abordei me soube responder, porque eram todos de outras cidades e era a primeira vez que vinham a Tamanrasset. Em “missão”, diziam, usando o termo argelino que designa a deslocação para outra cidade em trabalho.

Tive mesmo de sair da cidade e circundá-la por fora, coisa que o terreno que rodeia Tamanrasset permite por ser plano e maioritariamente de areia e terra. Demorei uma hora para chegar de uma ponta à outra da cidade, o que normalmente se faz em cinco minutos. A cidade tinha parado: a maioria das lojas estava fechada e o trânsito não existia. As ruas não estavam desertas porque alguns cidadãos tinham ido ver o presidente a fazer as suas visitas e inaugurações, mas a maior parte das pessoas que se viam na rua era mesmo constituída pela força policial. O presidente esteve em vários pontos da cidade e inaugurou as obras de maior destaque, que ainda não estavam acabadas. Omar, o engenheiro, explicou-me mais tarde que as obras na Argélia são inauguradas várias vezes antes de estarem concluídas por um ministro – ou presidente, neste caso – de cada vez. Enquanto me contava isto, sorria e abanava a cabeça em desaprovação.

Lembrei-me várias vezes daquele dia na obra da Via Rápida do Barreiro em que era eu a informar dos cortes de trânsito e a deixar passar as figuras de estado. O Primeiro-Ministro nunca chegou a aparecer, mas entretanto já se produziu e apresentou ao público o Pandur II, o novo carro blindado de fabrico português.

Por norma, desde que conheci a Argélia e o eixo Tamanrasset-Niger, não gosto que digam que Portugal é um país do terceiro mundo, nem permito que o façam à minha frente sem um comentário de resposta. Mas a realidade é que de vez em quando encontro parecenças, sobretudo no que diz respeito à noção desfocada que os governos destes países têm do poder. Contudo, e por saber que no nosso país muito se faz de bom apesar disso, Portugal não deixa de ser, para mim, um paraíso. “O paraíso triste”, como lhe chamou Saint-Exupéry, e eu estou inclinado a concordar.

19/12/2007

Estes não são os carros de Gary Numan

De vez em quando, uma caravana de carros semi-novos passa pelo deserto em direcção à fronteira. Peugeots e Volkswagens sobretudo. Os locais explicam que se trata de comércio ilegal de automóveis, que são comprados ou roubados na França e na Alemanha e trazidos para o Niger para serem vendidos. Vêm de Argel e passam por Tamanrasset e In-Guezzam. Dão nas vistas no caminho que fazem entre estas duas últimas localidades, porque as viaturas vulgares nas pistas são todo-o-terreno. Por isso, quando alguém vê uma fila de carros urbanos a levantar pó pelas pistas, já sabe do que se trata. Como lhe chamam os locais: "Máfia".

No caminho que separa Tamanrasset da fronteira há imensos esqueletos de carros abandonados. O número de carcaças aumenta à medida que nos aproximamos de In-Guezzam, talvez por o percurso ser mais exigente ou por ser mais difícil de conseguir a assistência mecânica das oficinas de Tamanrasset. Alguns ainda exibem a pintura e permitem distinguir de que carro se trata, mas a maior parte está ferrugenta, amolgada e para lá de qualquer identificação. Alguns foram carros de habitantes locais que a certa altura se cansaram de vez, outros foram veículos de turistas cujas viagens correram mal e uma parte – carcaças de camiões – foi de serviços de transporte vencidos pelo deserto. A posição em que estão é, em alguns casos, reveladora do que lhes aconteceu: alguns carros estão virados ao contrário e outros estampados em pedras. Existe até um cemitério destas carcaças, a alguns quilómetros de In-Guezzam, para norte.

Coisas normais na região que se tornaram míticas. Ao fim de alguns tempos a conduzir nas pistas, apercebemo-nos de que a estrada já existe há muito tempo, não está é nivelada nem alcatroada. Não sei é se, depois de a estrada estar feita, os todo-o-terreno da região vão ficar contentes: estão habituados à exclusividade das pistas e ninguém gosta de perder um monopólio.

Depois de escavarem a areia em redor das rodas da frente, os serventes da obra começaram a empurrar o primeiro automóvel da caravana de três, que estava atascado na areia e não conseguia sair do sítio só com a força dos outros condutores. Dei-lhes uma mão: eu próprio já fui empurrado também. Ao fim de alguns sacões, o carro saiu do sítio. Os condutores agradeceram e continuaram para o sul, onde alguém lhes havia de pagar pela viagem.

17/12/2007

Moula-moula

Omar, o engenheiro argelino, aponta-me um pássaro que passa a voar à frente da carrinha onde seguimos e diz que avistar esta ave é sinal de boa sorte. Chama-se 'moula-moula'. Parece uma andorinha com uma mancha branca na cabeça e costuma andar por sítios onde há água. Os tuaregues e os viajantes do deserto em geral sabem que, se virem um pássaro destes, é porque existe água nas imediações. Segundo o Omar, é um animal simpático que se aproxima de nós desde que, claro, estejamos quietos.

Os camiões-cisterna que transportam água para a obra são verdadeiros destroços de guerra. Ivecos, Berliets, MANs com trinta anos ou mais, decanos das pistas, enchem o tanque de água num poço situado a trinta quilómetros de Tamanrasset e esvaziam-no na obra, a cinquenta quilómetros desse poço. Com o avanço da obra, esta distância tende a aumentar muito, o que levanta algumas questões sobre o desempenho destes veículos no futuro. Quase todos se deslocam a passo de caracol, muitos apresentam sinais de velhice e ferrugem irreparáveis e alguns demoram vários minutos até conseguir engatar a marcha-atrás. Uma boa parte deles tem furos na cisterna e deixam rastos de água por onde passam: os furos são pequenos o suficiente para a água chegar praticamente toda ao destino mas grandes o suficiente para se tornarem caricatos. É vulgar avariarem, condenando os motoristas a passarem noites no deserto. Porém, estes já estão habituados a esses contratempos e fazem-se acompanhar de água e comida, que penduram no exterior do camião. A água viaja em odres – peles de cabritos há muito digeridos – suspensos na lateral da viatura para conservar a frescura, e a comida consiste, em parte, em pedaços de carne pendurados na parte da frente da cisterna. É, eufemisticamente, prático.

Os motoristas convivem com as avarias com a naturalidade com que as pessoas de vida dura encaram as dificuldades. Conhecem as manias ao camião e tentam reparar a avaria com as ferramentas que trazem. Se não conseguirem, mandam o companheiro pedir boleia aos carros que passam e ir à cidade buscar ajuda: é por isso que viajam sempre acompanhados de um ou mais motoristas.

A água, muito necessária aos trabalhos de terraplenagem, é um dos problemas mais graves com que lidamos. E qualquer um de nós cedo se apercebeu de que não podíamos contar com aquilo a que estávamos habituados em Portugal. Em Tamanrasset não é fácil arranjar camiões decentes, mas há já alguns meses que trabalhamos com estes e, mal ou bem, a água lá vai chegando à obra. Às vezes mais mal que bem, mas não há problema: também nós encaramos com naturalidade – aquela com que às vezes se devem encarar as dificuldades – o facto de sermos servidos por estes camiões. Têm décadas de pistas e deserto no lombo, já viveram mais vidas e sofreram mais mortes do que qualquer pessoa e, se virmos bem, nem toda a gente tem o privilégio de trabalhar com verdadeiras relíquias viajantes que, de tão selvagens, até requerem dois ou três homens para as domar.

O pássaro preto aproxima-se de mim aos saltos. Pára a uns três metros de mim e fica a olhar-me de lado. Fico quieto a ver o que ele faz, e o animal aproxima-se cautelosamente dos meus pés para beber a água de umas pequenas poças criadas pelas fugas do tanque de um camião.
- Olá passarito, estás bom?
A ave, ao beberricar saltitando, parecia concordar que os camiões não são, de facto, grande pistola.

10/12/2007

In-Guezzam

A vila – ou aldeia? – de In-Guezzam, no extremo sul da Argélia e a quatrocentos quilómetros de Tamanrasset, é para todos os efeitos o fim da linha. Da nossa linha. Pelo menos, quase: Apenas uma dezena de quilómetros – que serão construídos por nós, portugueses – a separa da fronteira com o Niger. Para lá, estão sítios que posso apenas considerar como sendo míticos e de fantasia, devido ao que se ouve dizer deles e a nunca os ter visto. Ao fim de uns tempos nesta região, começam a conhecer-se histórias de miséria, contrabando, crimes e emigração arriscada. Tudo camuflado e protegido pela areia, pelos montes de pedra e pelas grandes distâncias.

A zona onde há alguma água e verdura, uma rua principal com candeeiros e terra ladeada por casas castanhas que se espraiam em seu redor, lojas de portas abertas a oferecer pão, ferramentas e roupa – a escuridão dos seus interiores sugere-as como frescas, mais pela opressão do calor cá fora do que propriamente pelos seus atributos térmicos –, serviços simples como correios, postos de polícia e bombas de combustível, doze meses de calor por ano e areia por todo o lado – mesmo no vento –, é In-Guezzam. Na rua principal agrupam-se polícias de fronteira, miúdos saídos da escola e automóveis que esperam à porta das bombas que chegue combustível do norte. À volta da localidade pastam cabras guardadas por tuaregues preguiçosos, o que me leva a perguntar ao Sidi Mohamed – que faz parte da nossa pequena comitiva de estudo da subempreitada que ali vamos fazer – o que é que elas comem. Diz ele que este gado é criado do outro lado da fronteira, onde há vegetação, e só está aqui para ser vendido. Dezenas de cabeças.

À hora de almoço, já a comitiva de estudo tinha acabado o estudo, pelo que restava apenas a comitiva. Estacionámos às portas da vila e instalámo-nos num tapete estendido sobre a areia. O Sidi Mohamed informou-nos que a refeição ficaria por sua conta, mandou alguém à cidade chamar um cozinheiro e afastou-se para ir negociar um cabrito com os tuaregues que pastoreavam por ali. É Dezembro mas está calor: desapertam-se camisas, abanam-se t-shirts e viram-se caras na direcção da brisa. Para trás de nós está a vila, para a nossa frente está o areal interminável do qual emergem cabeços arredondados de pedra escura. Do rádio das carrinhas sai música que, misturada com o calor e a brisa, lança a languidez de um verão na atmosfera.

Quando o Sidi Mohamed regressa ao pé de nós com o cabrito, já o cozinheiro está à espera. Numa questão de minutos, o cabrito é degolado e desmanchado na areia. É grelhado num pequeno braseiro que foi ardendo entretanto e ao fim de uma ou duas horas é-nos oferecido numa terrina acompanhado de pimentos e cebola. Até gosto de cabrito, mas neste não toquei. Comi uns pedaços de frango – esse não morrera à minha frente – que tínhamos trazido de Tamanrasset.

Antes de nos fazermos ao caminho ainda ficámos ali um bocado. Parecia mesmo verão. Estávamos numa praia gigante, que tinha de sobra em areia o que lhe faltava em mar. Observávamos os tuaregues que entretanto carregavam o resto do gado caprino para um camião. Aproxima-se uma grande festa islâmica, em que a tradição manda comprar um cabrito e comê-lo com a família: vão conseguir vender todas as cabeças. Quando partimos, ao início da tarde, In-Guezzam está sossegada atrás de nós. Não há grande trânsito nem se vê muita gente na rua. Se calhar, penso eu, quase toda a actividade que traz vida a esta vila é feita fora dela. No Niger e em Tamanrasset. É que, apesar de ser um pardieiro árido e desolador, In-Guezzam tem uma pequena mas importante imagem de limite quimérico entre um nada e um tudo existentes em ambos os lados, ou não fosse uma localidade fronteiriça: para nós e para o cabrito é o fim da linha, mas para muita gente é apenas o início. Aliás: o meio.

Passados vários dias, durante uma viagem para a obra, pergunto ao Sidi Mohamed o que quer dizer ‘In-Guezzam’. No seu francês de fraca qualidade, responde-me que o nome da localidade se refere ao facto de, há muito tempo atrás, se degolarem muitas pessoas naquela zona. Passa-me pela mente um comentário sobre a degolação de caprinos que não consigo travar antes de me sair da boca.

08/12/2007

As flores lilases

Numa rua qualquer de Tamanrasset, dois miúdos, um rapaz e uma rapariga com não mais de três anos, gatinham pelo meio do lixo à procura de algo para comer. Estão praticamente nus e exibem a magreza de quem passa fome a sério. Às tantas, o rapaz sente-se mal e vomita. A menina avança na sua direcção e começa a comer o que ele deitou para fora.

Na televisão estava a passar o festival Eurovisão Júnior, no qual crianças de vários países interpretavam canções acompanhadas de coreografias, apresentadas por um homem louro nos seus trintas vestido com um blazer às flores em tons lilases. Os portugueses assistiam à retrospectiva das actuações dos vários países que antecedia a votação final. Crianças sorridentes de trajes e penteados extravagantes cantavam, dançavam, saltavam, aplaudiam e atribuíam pontos numa amálgama de luz e cor que, segundo era propagandeado de tempos a tempos, era proporcionada em parceria com a Unicef numa iniciativa de angariar fundos para combater a miséria nos países do terceiro mundo. De facto, a imagem da caixinha mágica por vezes dividia-se ao meio para exibir, numa das metades, o festival de música e, na outra, imagens de fome e crianças magras oriundas de um país qualquer que ninguém especificou. Nenhum locutor ou voz-off comentava as imagens de miséria: simplesmente eram lá colocadas como parte de uma edição de imagem definida por um realizador invisível, talvez numa tentativa de sublinhar a mensagem de caridade. Passados alguns segundos, o monopólio do ecrã era devolvido ao apresentador florido e às saltitantes crianças europeias.

Eu estava na sala a assistir ao festival e interrogava-me se mais alguém se apercebia do que se estava a passar. Sempre fui céptico em relação a grandes festas de angariação de fundos para uma iniciativa caritativa qualquer, não por acreditar que o dinheiro não chegue ao destino para que é pedido, mas sim por considerar que a caridade não deve ser feita assim. E as vestimentas e cabelos das crianças pareciam dar-me razão a cada saltinho.

Talvez seja por pensar assim que fiquei surpreendido ao não ficar minimamente aborrecido quando a Bielorússia ganhou e Portugal ficou no fundo da tabela. Nada aborrecido mesmo. Aliás, deve ser tudo impressão minha: de certeza que o dinheiro será entregue, de certeza que a iniciativa terá bons frutos, de certeza que a canção da Bielorússia era mesmo boa, de certeza que as crianças europeias serão felicitadas pela sua boa prestação enquanto as crianças africanas comem o arroz sorrindo, de certeza que toda a gente ficará contente com o resultado, de certeza que o realizador invisível é um génio que nos faz um favor quando nos exibe a miséria durante poucos segundos e no resto do tempo mostra luzes, cores, crianças sorridentes, apresentadores animados e flores lilases.

30/11/2007

Sidi Mohamed

É fácil ver ao longe quando é o Sidi Mohamed, o tuaregue rico, que está à porta do estaleiro à espera de ser recebido. Usa sapatos caprichados, óculos à aviador, relógio dourado e está sempre vestido com uma fatiota típica chamada bazane, uma espécie de grande bata com que cobre o corpo todo. Tem vários bazanes, todos de cores inacreditavelmente berrantes: cor-de-rosa, verde-claro, azul-turquesa, amarelo, lilás escuro e até um com riscas tão coloridas que fariam o arco-íris corar de inveja. É um vigarista de trazer por casa e, como tal, não deixa escapar nenhuma oportunidade, por mais remota ou absurda que possa parecer, de ganhar uns trocos. Ele próprio admite isso e diz que é um "desert bandito". É um subempreiteiro nosso e, por ser uma relação que envolve dinheiro, trata bem os portugueses. Em suma: como muitos árabes da região, é um fura-bolos. No entanto, não deixa de ser uma figura bonacheirona e simpática devido ao seu je ne sais quoi que me faz gostar dele e começar a rir mal o veja ao longe. Cumprimenta-nos efusivamente: aperta-nos a mão, puxa-nos com força contra ele, dá-nos dois beijos na cara, deixa a sua cabeça encostada à nossa e fica assim, muito quieto. Só quando se fala é que ele se afasta, e mesmo assim é raro não nos dar a mão enquanto conversamos. Toda esta manifestação de carinho, típica dos árabes mas inflaccionada no Sidi Mohamed, cai tão mal aos portugueses que chega a ter piada ver alguns de nós a tentar escapar aos seus cumprimentos. É um passarão que faz rir toda a gente.

Por isso é que, ao olhar para as riscas de todas as cores no bazane do Sidi Mohamed que tanto me alegram – e dando um sentido concreto a mais um lugar-comum –, percebo finalmente onde está o pote de ouro no fim do arco-íris.

Chicotadas psicológicas

- O quê? O Mourinho já saiu do Chelsea? – admirou-se o manobrador de cilindro.
- Não sabias? Já faz um mês... – observou o topógrafo.
- Um mês? Faz é dois meses! – corrigiu o director.
- E o Jorge Costa também saiu do Braga há para aí uma semana – voltou o topógrafo.
- Nã, três semanas! – disse o director.
- Eh pá, hoje não acerto uma...
- É o que dá, estar enfiado aqui no deserto... - observou o do cilindro.
E viraram-se novamente todos para a televisão.

29/11/2007

Dez

O velhote percorria a sua obra e, entre as instruções que ia dando aos seus trabalhadores, contava-me por alto a história da sua vida. É um homem simpático que se apresenta como Bob, diminutivo de Boubakeur. Apesar de a sua aparência o denunciar como argelino, a sua postura confere-lhe pinta de europeu: estudou na Argélia, doutorou-se em Londres, viajou um bocado por todo o mundo, criou família em Oran e uma pequena empresa que o trouxe até Tamanrasset, até nós. Caminha ao meu lado, com os seus óculos escuros e o seu lenço à volta do pescoço, e fuma em curtos bafos silenciosos. Apercebo-me de que o Bob diz aos trabalhadores para se esmerarem e se despacharem por minha causa: são nossos subempreiteiros. Fala-lhes em árabe e, para o fazer ver que eu o percebo, pergunto-lhe porque é que ele lhes está a dizer isso. Revela-me que usa o facto de eu estar ali para os fazer levantar o rabo do selim. Diz-me ainda que nunca se deve dizer que o trabalho de um subalterno é bom, mesmo que o seja.
- É um truque de relações humanas - diz ele - Desta maneira, o trabalhador não se sente indispensável e tenta sempre fazer melhor.
Replico:
- Mas, quando trabalhas para outra pessoa, que mal há em elogiarem o teu trabalho de vez em quando?
- Vou contar-te uma coisa que um professor de matemática uma vez me disse. Quando lhe perguntaram porque não dava nota vinte a ninguém, ele respondeu: "Vinte é para o bom Deus, dezanove é para mim, que sou professor, e dezoito é para o Bob."
Percebi a lição. E o velho pôs um grande sorriso antes de dizer que era barra a matemática.

10/11/2007

O mercado

São quase clichés as descrições de mercados em sítios exóticos, e toda a gente que me conhece sabe que sou uma vítima fácil de todos os clichés.

Toda a gente sabe que, quando se compra uma coisa num mercado, está-se na realidade a comprar duas: o artigo em si e o seu cheiro. O aroma das coisas é sempre mais intenso nesses sítios e povoa toda a atmosfera e envolve as lojas, quiosques e balcões, pelo que o dinheiro que se paga pelo que quer que seja que se compre, paga também o cheiro.

O mercado de Tamanrasset não é excepção: num grande terreno de terra batida e lancis mal amanhados, as lojas foram feitas em tendas que formam pequenas ruas e quarteirões de pano. Vende-se de tudo, e mesmo os artigos mais correntes que não dispõem da classificação eufemística de 'artesanato' são de qualidade duvidosa: perfumes, tapetes, tabaco, isqueiros, roupa, calçado, relógios, óculos de sol, brinquedos, produtos de higiene, alimentos. A falsificação de marcas é tanta e tão evidente que leva o visitante a interrogar-se se haverá alguma coisa genuína ali. A resposta depressa lhe chega ao nariz: o aroma de todo o comércio e mesmo das centenas de pessoas que falam alto, cozinham nas ruas e abandonam a loja sem risco de roubos mistura-se no ar e vai conduzindo o freguês por entre as lojas de paredes de tecido, para descobrir que, afinal, não existem apenas perfumes mas sim mil perfumes, não existem apenas tapetes mas sim mil tapetes, não existem apenas relógios, óculos, pulseiras, mas sim mil jóias que, não sendo de ouro ou pedras preciosas (abre-te Sésamo), possuem o mesmo brilho de um tesouro. Semeado em bancadas de madeira e tapetes numa esperança de que amadureçam na vontade de um comprador e ao alcance de um punhado de dinares.

Por isso, quando alguém vai comprar algo tão simples como um maço de cigarros, mesmo que o tabaco seja fracote, faz sempre bom negócio. O preço também nunca é elevado por aí além e existe sempre uma certeza de que os aromas, esses, não carecem de marca registada.