30/07/2007

As legalidades e as insónias

A verdade é que não consegui prestar muita atenção àquilo que a rapariga da companhia de seguros dizia, apesar de se tratar do meu próprio seguro de saúde. Era linguagem demasiado técnica para que eu a conseguisse absorver. Apenas fixei duas coisas: que a linha de atendimento ao segurado responde a todas as questões e onde localizar o seu número de telefone. Deve bastar.

Já ao contrato que assinei a seguir prestei bastante atenção. A directora dos recursos humanos explicava-me o documento cláusula a cláusula, enquanto se certificava de que toda a informação ficava gravada no meu cérebro: tinha uns olhos claros infinitamente fundos cujo olhar penetrante me trespassava as córneas e imprimia a laser, no interior da minha nuca, todas as letras do contrato. Função, local, obra, salário, benefícios, férias. Assinei. Mostrou-me fotografias, respondeu às minhas perguntas, contou-me histórias, pôs-me ansioso.

Ansioso: hoje não consegui dormir bem. Vou-me embora daqui a uma semana - para voltar sabe-se lá quando - e é altura de começar a perder o sono.

23/07/2007

A imunização

No último dia de trabalho antes de entrar em férias, a médica libertava tanto vapor que parecia estar prestes a explodir devido a pressão excessiva. Quando entrámos no consultório, ela discutia termos técnicos de medicina pelo telefone. Tinha uma cara permanentemente zangada e cansada. Apesar de educada, era assertiva, directa e ácida. Por ordem de um dedo seu, sentámo-nos a uma mesa na extremidade da sala e aguardámos o fim do telefonema.

Na sala tinham entrado comigo dois homens, um rapaz e uma rapariga. Os dois homens tinham ar de estar na casa dos quarenta e os jovens tinham mais ou menos a minha idade. Sussurravam um ao outro e davam as mãos: eram um casal. Quando a médica pousou o telefone, disse:

- Peço desculpa mas hoje está a ser um dia infernal, estou mesmo a precisar de férias - com um gesto brusco tirou os óculos, que ficaram suspensos à volta pescoço por meio de um fio - Vocês vão para onde e fazer o quê?

Os dois quarentões responderam Angola em trabalho, o casal México em lua-de-mel, eu Argélia em trabalho também. Ao ouvir Angola, a médica franziu o sobrolho:

- Vocês são os únicos daqui que vão ter que fazer a prevenção da malária. Não há vacina, a prevenção é tomar um comprimido uma vez por semana ao jantar. Eu sei que vocês vão chegar a Angola e toda a gente, incluindo os médicos, vos vai dizer para deixarem de tomar o comprimido porque faz mal ao fígado, a isto e àquilo, só porque o comprimido causa enjôo. Ora, eu já recebi três faxes da Organização Mundial da Saúde esta semana devido a terem aparecido casos de malária em Portugal, e as vítimas fizeram a consulta do viajante neste distrito - adoptou um ar ainda mais zangado e subiu o tom de voz - Ora, já toda a gente diz que eu passo a consulta a ralhar, mas pelos vistos não chega: ainda há pouco estive ao telefone com um médico angolano e discutimos por causa disto. Se em Angola eles não concordam com o comprimido é lá com eles, é por isso que eles têm o país que têm, mas o comprimido é perfeitamente seguro excepto se tiverem deficiências hepáticas... Por isso é que eles dizem que faz mal ao fígado. Mas é uma gaita de um comprimido, poça, a malária mata! Por isso livrem-se de deixarem de tomar o comprimido! Onde é que já se viu isto, casos de malária em Portugal!

Os quarentões acenavam "Claro" nas raras pausas do discurso da médica. Um deles tinha estado a falar lá fora com outro quarentão, seu conhecido, que estivera em Moçambique e tinha deixado de tomar o dito comprimido. A conversa deles tinha sido precisamente a que a médica estava a prever: o quarentão de Moçambique aconselhara o quarentão de Angola a não tomar o comprimido da malária. Mas agora, mais iluminado, este quarentão de Angola fazia "Claro" com a boca, ombros e cabeça, ao ouvir a médica repetir:

- Por amor de Deus, tomem a gaita do comprimido!

Depois, falando para todo o grupo, falou um grande bocado sobre a medicação de que nos deveríamos fazer acompanhar: antibióticos, antipiréticos, antidiarreicos, repelentes de insectos, protector solar, etc. Enquanto nos industriávamos em medicina de bolso, um carro começou a apitar furioso na rua. Diante do consultório, num estacionamento improvisado em passeio de terra batida, um carro estava trancado. A médica:

- É sempre a mesma história. Aquele carro é de algum de vocês?

Não era. E como não era, ela continuou o seu sermão sobre fruta bem lavada, água sempre engarrafada, saladas com muito cuidado e gelo nunca. Intercalou-o com exemplos dramáticos de turistas que apanharam uma diarreia logo no primeiro dia de férias e não chegaram a sair do quarto durante toda a semana, das más condições de higiene que ela tinha visto quando trabalhou em África, e de todas as desvantagens de agir de forma diferente à que ela ordenava, como doenças e morte. Depois, enquanto as buzinadelas vindas da rua se tornavam cada vez mais insistentes, aconselhou ainda:

- E claro, relações sexuais sempre, sempre, sempre com preservativo. E mesmo assim, vejam se vale a pena - colocou novamente os óculos no nariz, olhou para os seus papéis e começou a passar-nos as receitas para as vacinas. - Vocês para o México tomam estas, é relativamente pacífico. Vocês para Angola têm que tomar isto e, já sabem, fazer a prevenção da malária. E tu, meu filho, vais ter de tomar estas duas e ter de ter muito cuidado que as condições de higiene deles são de bradar aos céus.

Hepatite A e febre tifóide. Angola teria sido pior. Nisto, entra uma colega da médica na sala:

- A polícia está lá fora a multar carros de empreitada. Algum deles é dos senhores?

Não. E começámos a sair do consultório à vez para ir à farmácia aviar a receita e regressar ali para a pica, que foi extremamente simples: hepatite A no braço esquerdo, febre tifóide no direito e à saída choros de crianças e velhos a tossir. Quando cheguei à rua, depois de tudo terminado, os agentes da polícia içavam um carro para cima do reboque.

13/07/2007

O visto

O pedido de visto para a Argélia é um papel engraçado. Tem coisas escritas em árabe. E depois, numa linha com coisas escritas em árabe também, nós assinamos. Três vezes em três papéis iguais: três vias. Gosto destas pequenas coisas.

11/07/2007

Mote

- Pois é, Rui, tenho aqui a Argélia para si - disse a rapariga dos recursos humanos, rindo. E eu ri-me também. Era tão certo que me sairia este brinde...

A partir desse instante, a ideia começou a ganhar força e a aliciar-me cada vez mais: o ser humano possui poderosos mecanismos de conformação. Comecei a ler sobre a região, costumes, clima, locais de interesse, e assim fui construindo uma expectativa. A reacção das pessoas a quem digo para onde vou é fantástica: todas querem que eu vá dando notícias, mostrando fotografias, contando histórias. Algumas querem mesmo ir visitar-me.

Para quem ainda não sabe ou não me conhece: vou trabalhar para o sul da Argélia, na construção de uma estrada que ligará Tamanrasset a In-Guezzam, uma pequena povoação na fronteira com o Niger. Em bom rigor, essa estrada já existe, mas é uma "pista", ou seja: é de terra batida como aquelas estradas do deserto que por vezes aparecem na televisão. Tudo isto fica no meio do deserto do Saara. É em pleno deserto onde eu vou viver, no estaleiro da obra que, segundo consta, está equipado com alguns confortos bem portugueses. Sobre tudo isto escreverei mais tarde. Entretanto, aqui fica um pequeno esquema do meu destino nos próximos tempos. A estrada está assinalada a vermelho: não corresponde certamente à realidade do projecto porque para além de a escala ser pouco precisa, a linha vermelha foi desenhada no Paint.

Prólogo

Sentado com os amigos à mesa do café, eu estava a ser bombardeado com perguntas. As primeiras, frutos de uma curiosidade genuína, tiveram razão de ser, mas depressa se transformaram em perguntas palermas e filmes de imaginação fértil. Já em casa se passara o mesmo. Aliás, parecia que todos os dias surgia uma pergunta nova a alguém, embora de forma alguma as pessoas deixassem de repetir constantemente as mesmas questões:
- Quando vais?
- Durante quanto tempo?
- O que vais lá fazer ao certo?
De maneira que nesse dia, sentado com os amigos à mesa do café e a ser bombardeado com perguntas (primeiro sinceras, depois palermas), considerei que talvez existisse algum interesse em começar um blog e relatar a minha experiência. E quiçá acabar de vez com o massacre interrogativo: por isso, aqui vai.