30/09/2007

Mil novecentos e troca o passo

Quando o traçado de uma estrada se quer mais alto do que o terreno natural, é preciso construir um aterro. Para isso, vai-se buscar o material para aterro - que é o próprio solo - a sítios onde ele existe com características e quantidades adequadas, cujo nome técnico é 'zonas de empréstimo'. Apesar de terem este nome, julgo que até hoje ninguém devolveu o solo "emprestado", retirando-o da estrada e colocando-o novamente no local de origem: de qualquer forma não há problema porque também não é sujeito a juros.

Quando o Abduljabar, o técnico de laboratório argelino, foi à carrinha buscar o estudo das zonas de empréstimo ao longo do traçado, nunca pensei que se tratasse de um documento com quase trinta anos. Porém, não seria de esperar outra coisa, porque o próprio projecto da estrada tem a mesma idade. Estávamos em pleno deserto, numa zona vasta praticamente plana onde só se vêem montes castanhos ao longe separados da planície de areia por uma linha do horizonte azul, tremeluzente e aquática: miragens, da cor do céu. Como acontece vulgarmente, fazia um vento forte, que, para além de tornar complicado folhear as páginas do caderno antigo e descobrir nele a informação pretendida, fazia tremer o boné azul do Abduljabar.

O documento estava demasiado branco e bem conservado para pôr de parte a hipótese de ter sido fotocopiado em boa hora para evitar desintegração. O seu conteúdo, porém, revelava a sua antiguidade: cada zona de empréstimo era representada numa página por um esquema altamente dúbio constituído por uma linha recta (o traçado da estrada), um pequeno marco quilométrico estilizado, um desenho rudimentar das montanhas que se podiam ver naquela área e um polígono delimitador da zona de solo adequado para construir aterros, com a respectiva distância à estrada. No sítio onde estávamos, descobrir a localização exacta do polígono no terreno pareceu-nos uma tarefa quase impossível: o único ponto de referência credível era o marco. Mais impossível nos pareceu ainda quando o Abduljabar nos disse que os pontos do polígono estavam assinalados no terreno.

Lembro-me que, ao ouvir isto num francês gritado com força superior à do vento, olhei em volta para tentar perceber o que havíamos de fazer. A região pareceu-me ainda mais plana e ainda mais incaracterística. Só algumas pedras negras rasgavam a superfície arenosa e a monotonia da paisagem: assinalados como?

Ao seguirmos o técnico argelino, que tentava orientar-se pelo desenho e impedir o voo do boné e das páginas fotocopiadas (de certeza que fotocopiadas), apercebemo-nos de que ele procurava qualquer coisa nuns pequenos montes de areia e pedra, pouco visíveis à distância. Segundo ele, havia qualquer coisa ali que assinalava os pontos do polígono que tinha no esquema altamente dúbio do caderno. Fomos seguindo o Abduljabar à medida que ele se dirigia para os montinhos que detectava à distância para os sondar com uma pá.

Os montinhos não se distinguiam bem à distância devido à sua pequena dimensão. A areia e pequenas pedrinhas que os constituíam não destoavam do resto da paisagem. Alguns eram formações naturais, outros talvez feitos por alguém para criar pontos de referência, como é comum: por todo o percurso de Tamanrasset até In-Guezzam há montes de areia e pedras que assinalam o trajecto e mostram o caminho. Talvez devido a isso, eu estava céptico relativamente aos montes. Pelo menos até o Abduljabar, vencendo o vento no que diz respeito às páginas e ao boné, ter encontrado um papel sob uma pedra num destes montinhos.

Era um papel grosso, que parecia ter sido arrancado de uma embalagem de qualquer coisa à laia de improviso. Alguém tinha escrito nele a lápis, há quase trinta anos, que aquele montinho correspondia ao quarto ponto do polígono da décima quarta zona de empréstimo. Depressa pensei que aquele papel e aquela informação de grafite era, muito provavelmente, mais antiga do que eu. E tinha subsistido, perfeitamente legível, ao vento que rouba fotocópias e bonés durante todo esse tempo apenas com a ajuda de uma pedra. Surreal e mágico: resistiu mais impunemente aos anos do que eu e, certamente, do que quem o colocou ali. Como uma cápsula do tempo, só que sem cápsula.

Foi por isso que, antes de partirmos em busca dos restantes montinhos, reslovi tirar uma fotografia ao papel. Pedi a alguém para me segurar no papel e tuca. Achei curioso, interessante e bizarro e por isso tuca. Tuca porque assim, mesmo que o vento leve os bonés, as fotocópias (é tão certo que fotocópias) e os papelitos, terei a certeza de que estes tempos que passo aqui ainda estarão num sítio qualquer perto de mim (e se calhar também faço um esquema altamente dúbio para os conseguir encontrar) daqui a mais uns trinta anos.

A modorra e os soldados

O organismo do estado onde eu precisava de ir abre às nove da manhã durante o Ramadão. Cheguei dez minutos antes e, como é óbvio, tive de esperar quase até às dez para falar com o senhor que ia assinar os papéis que eu levava. Decidi esperar na rua e observar.

O facto de serem nove da manhã não costuma intimidar muito o sol, porque a essa hora já sou obrigado a usar manga curta. O calorzinho agradável que se fazia sentir e a minha modorra matinal encostaram-me à parede da esquina e fizeram-me espreguiçar. A rua ainda não estava muito movimentada, mas também raramente o está. Passavam poucos veículos, o que não significa que o trânsito é seguro: Peugeots 504 e 505 a caírem de podres, carrinhas Toyota, jipes variados, táxis (mais Peugeots), motas, bicicletas e dromedários atropelam-se numa espécie de desafio para descobrir quem conduz pior. Diria que também é da modorra, porque apesar de o tráfego ser desordenado até o sol se pôr, neste sítio é fácil ter-se modorra o dia inteiro. Enfim, só neste dia é que me apercebi do quão curioso é haver às vezes tão poucos carros na rua e mesmo assim ser perigoso andar na estrada.

Mas dizia eu que Peugeots, Toyotas e assim. E também pessoas. Algumas a irem para o trabalho, outras, mais jovens, vestidas de soldado a entrarem num quartel próximo, outras, mais jovens ainda, a irem para a escola. Passa por mim um grupo de miúdos vestidos com batas brancas, como se fossem pequenos médicos de mochila às costas. As mulheres, com a cabeça tapada. Os tuaregues também. Às vezes, as pessoas que passam mais perto de mim cumprimentam-me. "Salaam Alaykum". Nenhuma destas pessoas corre para lado nenhum: percebo a minha ingenuidade em ter vindo dez minutos mais cedo e a sorte que tenho em ser tão ingénuo assim.

O sol bate numa das paredes dos edifícios, duas no máximo, e não me deixa ter certezas acerca da sua cor: avermelhado ou acastanhado? Seja como for, é a cor dominante nas casas de Tamanrasset, creio eu que para não destoar. Troco a esquina por uma árvore grande e amodorro-me junto ao tronco pintado de branco na base, como todos os outros troncos de árvores grandes.

Em suma: os Peugeots, Toyotas, soldados e médicos pequeninos que talvez curem doenças pequeninas também, todos dourados pelo sol e acastanhados pelos edifícios. É da luz, creio, e do calor também. É uma imagem calma e tranquila, graças à cor e às pessoas: ninguém tem pressa, como se toda a gente estivesse a esperar comigo pelo senhor que assina papéis. Como se toda a gente tivesse a modorra que eu tenho, os soldados, os táxis e os dromedários. Por isso, movido pela simples cortesia e grato por me fazerem companhia enquanto espero, cumprimento também toda a gente que passa por mim.

Há imensos militares em Tamanrasset. É uma cidade muito militarizada porque serve de base para a vigilância e protecção das fronteiras com o Niger e com o Mali, e de toda região sul em geral: uma área tão vasta de areia e pedra que torna estranho - e interrogo-me acerca disso - o facto de a farda dos soldados ser em tons de verde.

29/09/2007

A aguardente

Assim de repente veio-me a vontade de escrever, eu que até estava a pensar escrever qualquer coisa amanhã, uma coisa assim gira sobre Tamanrasset, dessas que dão a conhecer um bocado desta realidade àqueles que não têm oportunidade de vir aqui ver como isto é e que a meu ver não perdem grande coisa porque isto não é nada de especial porque é um pardieiro, a não ser que venham uma semana para conhecer como o resto dos turistas europeus e isso chega porque não há muito mais para ver, paisagens e tal, mas ao fim de algum tempo cansa porque afinal de contas é o deserto e o deserto é famoso por ser grande e monótono e acaba por ser uma chatice ao fim de muito tempo.

Acho que me deu a vontade de escrever porque estava aqui na internet a falar para Portugal e para a vida que pus em pause (tuca) para vir para cá ganhar a vida e essas coisas que as pessoas crescidas fazem (agora já trabalho, sou crescido), e comecei a ouvir uma música que ouvia imenso quando trabalhava na margem sul do Tejo. Claro está que as memórias jorraram em catadupa sobre a minha cabeça pequenina e o resultado é a inundação deste texto, que não vou guardar em Word como os outros, que não irei reler, que será espontâneo, que irá destoar dos outros mas no fundo faz parte da experiência de estar déplacé aqui na Argélia e conviver vinte e quatro

A professora de língua portuguesa diz aos seus alunos:
- Num texto corrido, os números escrevem-se sempre por extenso.


horas por dia com a obra, com a cultura estranha que tanto deu a fazer a vários reis nossos, com o trabalho, com as saudades, com o calor (se vissem como estou agora), com a areia e o pó, com todas essas coisas que tornam o facto de estar no deserto numa coisa "gira".

A margem sul do Tejo é uma coisa onde eu vivia na altura em que o ministro Mário Lino decidiu dizer que a margem sul do Tejo era um deserto. Foi mais ou menos por essa altura que soube que viria para aqui, o que me rendeu comentários

- Vais sair de um deserto para ires para outro!

sem piada nenhuma. Quer dizer, na altura tinham piada mas agora deixaram de ter porque começo a ter saudades até da margem sul do Tejo.

No Lavradio, freguesia do concelho do Barreiro, existe um depósito gigante de gesso que forma um planalto com uma extensão enorme. Localmente, é conhecido como 'Montes da Lua', devido ao seu aspecto árido e inóspito. Cativa pela sua estranheza. Visitei os Montes da Lua várias vezes quando vivi por ali e pude ter uma perspectiva diferente do estuário do Tejo: vê-se o casario de Lisboa, o cristo-rei de Almada, a base aérea do Montijo, as pontes, a ilha do Rato, as fábricas do Barreiro. Das vezes que lá fui estava frio e um vento do caraças. Cativa, acreditem: é desolador, assustador, perturbador ver uma quantidade enorme de gesso mesmo à beira do nosso Tejo, mas cativa. Os U2, os Blasted Mechanism, o Cristiano Ronaldo e os actores do Filme da Treta pensam o mesmo, porque já lá fizeram sessões de fotografia-barra-filmagem.

Para mim os Montes da Lua eram o deserto da margem sul do Tejo e acho que gosto desse tipo de sítios em que uma pessoa se sente perdida e espantada. É isso: estava espantado. Gosto de coisas que ainda me espantam. Tamanrasset e o Saara espantam-me. Surpreendem-me. Já cá estou há quase dois meses e ainda há qualquer coisa que me surpreende, que estranho: acho isso fabuloso. Há qualquer coisa neste espanto que me faz ter vontade de conhecer e perceber os sítios, e é isso que me cativa. Isso acontece mais nos sítios feios e difíceis porque são esses que se têm que olhar com mais atenção para se compreender que todos os sítios têm o seu encanto. Atenção: eu disse encanto e não beleza.

Certa vez, em Lagos, estava à procura de um restaurante quando um rapaz com dois finos na mão me abordou em inglês oferecendo-me ajuda e uma das cervejas. Recusei a cerveja e aceitei a ajuda. Revelou-me a direcção para o restaurante que procurava e acompanhou-me. Chamava-se Jamie, tinha dezassete anos e era australiano. Estava a trabalhar em Lagos. Quando lhe perguntei porque razão um australiano tão novo tinha vindo para tão longe de casa, ele respondeu-me:
- Oh, but Lagos is the best, man!


Acho que serve tudo isto para dizer que tenho saudades de Portugal. Mais nada. Prometo que da próxima escrevo qualquer coisa gira sobre a Argélia, sobre Tamanrasset, sobre o deserto, qualquer coisa que contribua para dar a conhecer a vida aqui. Mas neste preciso momento - e se for necessário, apagarei este texto e negarei tudo -, só consigo escrever sobre o sítio onde estou.

22/09/2007

O gamadensímetro

Na construção de uma estrada, antes de se aplicar o vulgarmente chamado ‘alcatrão’, é costume aplicar-se uma camada de brita chamada ‘tout-venant’. Aqui, no sul da Argélia, não se aplica tout-venant mas sim ‘tuf’, um solo natural frequentemente encontrado nuns montes avermelhados no deserto. Depois de espalhado sobre a plataforma da estrada e regado, é compactado com cilindros. A compactação final, que deve obedecer a valores estipulados no projecto, é medida com um aparelho chamado gamadensímetro. Durante o funcionamento, este aparelho liberta radiações. Convém não se estar perto dele enquanto funciona, porque a presença de uma pessoa nas proximidades influencia os resultados e, segundo dizem alguns, as radiações libertadas podem provocar disfunções masculinas indesejadas. Pelo sim, pelo não, ninguém me apanha perto do gamadensímetro enquanto ele não terminar a leitura: no fundo, é um bocado como guardar o telemóvel no bolso de trás das calças.

Neste momento está a aplicar-se tuf. Periodicamente, um fiscal técnico de laboratório chamado Aissa vai até à obra para verificar com um gamadensímetro se a compactação está dentro dos valores devidos. Enquanto esperamos que o aparelho cuspa os resultados do ensaio, conversamos em francês. O tema mais frequente a seguir ao trabalho é a religião. Mais propriamente, as diferenças entre as nossas religiões. Como está a decorrer o Ramadão, este tema vem à baila mais vezes ainda.

O Aissa prepara o aparelho para o ensaio e eu aproveito a necessidade de me distanciar para ir até à carrinha buscar uma garrafa de água. Está a cinquenta metros de nós, perto do último ponto que analisámos. Caminho sobre o tuf compactado que se prolonga como uma passadeira até desaparecer em curva no cimo de um monte. Está um vento fortíssimo, que nos refresca ao mesmo tempo que nos enche de areia. De cada lado da estrada há colinas de areia e pedra a perder de vista onde pouca gente, incluindo os argelinos, se aventura. No cimo dos montes mais próximos voejam bandos de corvos que são atraídos pela água que misturamos no tuf: são silenciosos e não incomodam, mas saltam à vista por causa do contraste que fazem com a monotonia da paisagem. Chego à carrinha, pego na garrafa e regresso para junto do Aissa. Bebo um trago e ofereço-lhe água, sorrindo. Sei que ele vai recusar porque é Ramadão. Faz que não com o dedo e diz:
- Le Dieu.
Depois, pergunta-me se não faço Ramadão. Rio-me e respondo-lhe que não, dizendo que cada um de nós adora o mesmo deus de formas diferentes. O Aissa insiste na ideia de que eu devia fazer o Ramadão: segundo ele, quando morrermos, Deus irá ter em conta todas as rezas efectuadas e Ramadões cumpridos antes de nos decidir aptos para o Paraíso. Não sou religioso: talvez seja por isso que comentei que o Paraíso será ganho se agirmos em vida de acordo com certos valores, como a bondade, honestidade e honra, os três únicos valores que na altura consegui dizer em francês. O fiscal retorque que existe uma componente de veneração que não pode ser descurada. Algo que eu já sabia e que é responsável por eu não ser religioso. Não tenho paciência para missas, quanto mais passar um mês sem comer durante o dia.

O vento leva os corvos a pairar no ar sem se mexerem, levanta-me o cabelo e ameaça o boné do Aissa. Faço o Aissa notar que um deus bondoso não o obrigaria a estar ali ao calor com os lábios e os dentes cobertos de areia e pó trazidos pelo vento sem o deixar beber água, mas o homem objecta que o seu deus não o obriga a nada: os árabes só fazem o Ramadão se quiserem. A conversa estagna.

Examinamos o ecrã do gamadensímetro e encontramos um valor favorável, que o Aissa escreve numa folha de papel dobrada em oito. Pegamos no aparelho e avançamos mais cinquenta metros, indiferentes ao vento cada vez mais forte que já obrigou os corvos a pousar.

20/09/2007

As feras

A esta luz, reconheço que o sinal de perigo português análogo a estes não deixa de ser um bocadinho ridículo, embora ache que a ovelha seja um bocado exagerada. Até porque ainda não vi nenhuma.

19/09/2007

Os olhos

Li uma vez num livro qualquer a seguinte frase: “as mulheres europeias, que usam argolas nas orelhas, acham que as mulheres africanas, que usam argolas no nariz, são bárbaras”.

As mulheres que se vêem em Tamanrasset, na sua grande maioria, envergam uma espécie de lenço chamado khimar que lhes cobre a cabeça e, em alguns casos, também a cara. Há uns dias atrás, cruzei-me na rua com uma mulher que tinha a cabeça completamente tapada, deixando apenas uma pequena abertura na zona dos olhos para conseguir ver. Olhámos um para o outro com estranheza: ela, presumo que tenha sido por causa do boné e dos grandes óculos escuros que eu trazia e me cobriam grande parte da cara também.

17/09/2007

Aboukh e as coisas importantes

Cheguei ao refeitório para jantar. O ajudante de cozinha, que mais tarde vim a saber chamar-se Aboukh, indicou-me os vários pratos que tínhamos à disposição nesse dia, dizendo os nomes dos alimentos em português e acompanhando-os com o dedo:
- Frango, peixe, batatas, arroz, merda.
Nessa altura, através deste rapaz árabe, comecei a aperceber-me de que, por mais que as nossas culturas tenham diferenças, estas serão sempre superadas pelas semelhanças humanas que partilhamos: quanto mais não seja, a piada em aprender palavrões noutras línguas.

Sexta-feira – de um modo geral porque nem sempre – é o dia de descanso, o que significa que a noite de quinta-feira é mais comprida que as outras. O jantar prolonga-se ao ritmo da conversa, a conversa prolonga-se ao ritmo da cerveja e a atmosfera é indubitavelmente mais leve. Às vezes, há enchidos ou bacalhau, duas coisas que não existem em Tamanrasset e mesmo em Argel não se encontram em qualquer lado. A presença desse tipo de víveres aqui deve-se a alguns portugueses que, quando regressam das férias em Portugal, trazem a mala cheia deles. Depois, os patrícios juntam-se à volta de uma mesa e come-se do que houver. Numa dessas vezes – aquela em que, desde que cá estou, se juntou mais gente à volta da mesa – o Aboukh estava a trabalhar na cozinha. Servindo-nos as cervejas, imitou os trejeitos de alguns portugueses numa mímica desajeitada acompanhada de palavrões em português. Fez rir toda a gente.

O Aboukh é muito apreciado pelos portugueses devido ao seu bom humor constante. Não é preciso falar em francês com ele: percebe praticamente tudo o que se lhe diz em português, incluindo palavrões e insultos. E quando o insultamos em árabe, ele insulta-nos em português: é simples. Por vezes, quando o tentamos convencer a comer enchidos de porco e a beber álcool, ele sorri, aponta o dedo para o céu e chama-nos nomes. Sem o saber, tem uma forma elegante de nos fazer prestar atenção aos valores dos árabes.

Podia dizer que gosto do Aboukh por ter simpatia e bom humor, mas estaria a mentir. A verdade é que gosto do Aboukh por ter uma família de treze pessoas que vive do seu ordenado e, agora sim, simpatia e bom humor.

Dizia eu há bocado que, por mais que as nossas culturas tenham diferenças, estas serão sempre superadas pelas semelhanças humanas que partilhamos. Toda a gente sabe isto, e toda a gente esquece. Mas graças ao Aboukh, não só compreendi para sempre que há, de facto, valores universais, como também já sei dizer ‘merda’ em árabe. É ‘khra’.

13/09/2007

y=x^2

Portugal entra-nos por aqui. Notícias. Futebol. Maddie. Séries. Novelas. Filmes.

Há quem tenha deixado de ver televisão porque não aguenta as saudades que isso provoca. Ao assistir ao telejornal no fim da minha primeira semana cá, apercebi-me exactamente dessa sensação: um nó na garganta que desafia as leis da física e nos bate levemente no ombro dizendo "agora só daqui a muito tempo".

Um nó pequeno: afinal de contas, somos todos homenzinhos.

12/09/2007

O Deus

Não raras vezes, assisto a árabes a rezar. Largam o que estão a fazer, ajoelham-se no chão, alguns estendem um tapete pequeno antes dos joelhos e prestam adoração a Deus. Fazem-no em qualquer lado: na mesquita, em casa, no deserto, na rua, no trabalho. O sol indica-lhes Meca: a Arábia Saudita fica para leste, por isso de manhã rezam virados para o sol e à tarde de costas para ele. Em Tamanrasset, tal como em todo o país, ouvem-se os cânticos a sair dos megafones que há nas torres das mesquitas. As palavras – ininteligíveis para mim – são lentas, arrastadas e melancólicas, e espalham-se num eco por todas as ruas, misturando-se com o ar e com o calor, entranhando-se na cidade.

Amanhã, dia 13 de Setembro, começa o Ramadão. Segundo exigem os princípios islâmicos, o fiel deverá passar trinta dias sem comer nem beber desde a alvorada até ao pôr-do-sol. Também deverá abandonar o álcool, o tabaco, o sexo e as pastilhas elásticas. Todo este jejum é seguido religiosamente – literalmente! – pela maioria dos árabes, e como estamos no país deles temos que nos adaptar. O refeitório irá estar aberto de madrugada e, à porta, foi afixada a informação das horas exactas da alvorada e do ocaso.

Segundo diz quem já viu, os árabes passam mal os primeiros dias do Ramadão. Trocam os horários ao organismo e sofrem com a fome, até se habituarem ao novo regime de jejum ao fim de uns quatro ou cinco dias. Não podem sucumbir: se desrespeitarem um dia do Ramadão, têm que jejuar durante sessenta dias em vez de trinta. Se desrespeitarem esses sessenta dias, sujeitam-se a cento e vinte, e assim por diante até ao ‘mais infinito’. Os doentes, as grávidas e os viajantes estão dispensados de fazer o Ramadão.

Como todas as questões religiosas, a decisão de fazer ou não o Ramadão é pessoal e depende da fé. Há árabes que não seguem a religião islâmica, à semelhança do que acontece com muitos católicos em Portugal. No norte da Argélia, região mais ocidentalizada, a taxa de praticantes é menor do que no sul. Os jovens também têm tendência a ser mais liberais neste aspecto. Porém, todos os argelinos a quem pergunto se vão fazer o Ramadão – e pergunto a bastantes – respondem que sim. De uma forma geral, os árabes levam a religião mais a sério que nós. Mas até um colega nosso, o Ezequiel, português de gema que se converteu ao islamismo há algum tempo, vai fazer o Ramadão.

Hoje ao jantar, o Nuno, colega nosso, conta que perguntou ao rapaz argelino que começou agora a trabalhar connosco se ia fazer o Ramadão. Ele respondeu que sim: “bebendo whisky com fartura”.

11/09/2007

J'ai oublié all my life

O topógrafo da fiscalização, natural de Ghardaïa, trabalhou em Hassi Messaoud durante muito tempo e por isso prefere falar inglês com os estrangeiros. Eu respondo-lhe sempre em francês porque me faz uma confusão enorme ouvi-lo em inglês, aos colegas dele em francês e aos meus colegas em português: o resultado disto tudo é eu dar comigo a dizer, como aconteceu hoje, coisas do tipo “ça va, my friend”, “beaucoup money” e “j’ai something for you”.

Hassi Messaoud - O bom, os maus e o Tinoni

A centenas de quilómetros a norte daqui existe uma pequena cidade chamada Hassi Messaoud, da qual se ouve falar muito. É uma cidade pequena mas muito famosa na Argélia devido à grande extracção de petróleo e gás natural que se faz na sua zona. Há uma grande concentração de empresas europeias e americanas com actividades relacionadas com estes recursos naturais, o que torna Hassi Messaoud uma cidade rica e badalada. São muitos os europeus e os americanos, a cidade é desenvolvida, os aviões saem a horas, os contratos de emprego são aliciantes, a língua forte é o inglês e não o francês, as transacções são milionárias. Contudo, segundo a opinião geral dos argelinos com quem falo, os nativos de Hassi Messaoud são os argelinos com pior feitio. Não sei porquê, mas pelo que já pude ver estou inclinado a concordar. São desconfiados, arrogantes, vigaristas, preguiçosos, mal-humorados, prepotentes, enfim: uma vasta gama de defeitos. Estará essa atitude relacionada com o rebuliço à volta dos recursos naturais da sua terra? Consequência de incompatibilidades culturais? Problemas que surgiram com os estrangeiros? Competição na corrida ao ouro negro? Ou apenas um problema de maus fígados?

Fígados ou não, o facto é que grande parte do gás natural consumido em Portugal vem da Argélia. Por isso, da próxima vez que acenderem um bico de fogão lembrem-se de mim. A não ser que não tenham gás canalizado. Nesse caso, lembrem-se do conselho do Tinoni de não deitar a bilha para aproveitar o restinho de gás que ficou lá no fundo, porque é perigoso: eu estou a avisar.

06/09/2007

Crise de identidade

O engenheiro argelino que vai realizar a intervenção nas oueds intersectadas pela estrada, já meu conhecido, age como se lhe agradasse ver um miúdo novo a trabalhar com ele. Sempre que me vê é extremamente simpático e cordial. Um dia, perguntou-me a sorrir:
- Do you understand english?
Respondi-lhe que sim, e ele atirou, pondo as mãos nos meus ombros e rindo:
- You look like an american star!


O meu nome próprio é extremamente simples porque só tem três letras, mas isso não impede os argelinos a quem me apresento ou sou apresentado de terem alguma dificuldade em pronunciá-lo. Alguns deles perguntam-me, para confirmar se compreenderam o nome:
- Rui? Comme Rui Costa, le footballeur?
E quando lhes respondo que sim, nunca mais se atrapalham com o meu nome.

Notícia de rodapé de noticiário em Portugal no dia 6 de Setembro de 2007

Nenhum português dos que aqui estão – incluindo eu – gosta de andar com a escolta policial atrás. Chegam atrasados, atrasam-nos e, muitas vezes, estorvam-nos. Alguns são extremamente antipáticos. Correm boatos, oriundos da própria polícia, de que no estaleiro de In-Guezzam a segurança terá de ser levada muito a sério, por estarmos em pleno deserto quando nos mudarmos para lá.

Atentado em Batna, no norte do país, a cerca de 1400km de Tamanrasset. Um suicida fez-se explodir no meio de uma multidão que aguardava a chegada do presidente Abdelaziz Bouteflika. Cerca de uma dezena de mortos e mais de trinta feridos.

05/09/2007

O deserto, afinal

No cimo do monte, olho em volta para ver um pouco mais da paisagem. É arrebatadora. Repete-se até ao horizonte, onde não dá sinais de terminar. Daqui, percebe-se a facilidade com que nos poderíamos perder se não existisse a estrada, mesmo no estado em que está. Sinto-me nervoso por estar longe da carrinha e desço dali.

‘Está calor aí?’ Ouço a pergunta imensas vezes, e respondo-a outro tanto. Está calor sim. Apesar de chover bastante aqui nos meses de Julho e Agosto, a época chuvosa do Hoggar, está sempre calor. Contudo, Tamanrasset é relativamente amena: se nos afastarmos da cidade em qualquer direcção, começamos a descer das montanhas e sentimos um calor mais forte. A norte em In-Salah, a sul em In-Guezzam, a oeste em Bordj Badji Mokhtar e a leste em Djanet, a pluviosidade desaparece e as temperaturas atingem valores inacreditáveis, aproximando o Saara da ideia que temos dele. As maiores semelhanças entre este sítio e a forma como imaginamos o deserto são, na minha opinião, os tuaregues e as temperaturas altas. A paisagem da zona não é constituída por uma infinidade de dunas amarelas ou cor-de-laranja, nem o oásis de Tamanrasset é um aglomerado de palmeiras em redor de uma nascente de água. As dunas infinitas existem nos ‘ergs’, ou mares de areia, que são apenas uma parcela do Saara, e muitos oásis só têm água à superfície quando chove. Até os camelos são uma farsa: ainda não vi um único desde que cá cheguei. O que há são dromedários. Para além deles, encontram-se imensos animais: cabras, burros, pássaros, lagartos, cobras, escorpiões e gazelas pequenas. Quase todos são da cor da areia, excepto as cabras, os burros e uns escorpiões pretos enormes. Desses, só vi fotografias, e chega.

O sol é terrivelmente forte: todos os colegas que cá estão tiveram um período de habituação, tal como eu, que estava de rastos ao fim dos dois primeiros dias que passei ao sol. Já houve um português que teve de ser hospitalizado por exposição excessiva ao astro-rei. Contudo, ao fim de algum tempo ficamos habituados e passamos a só precisar de água. Muita água.

A paisagem é constituída principalmente por uma terra arenosa que em alguns locais – e aí sim – é completamente substituída por areia. Há montes dessa areia encimados por pedras pretas, castanhas, vermelhas, brancas ou azuis. Ou, simplesmente, montes de pedra. Nem sempre se vê o horizonte com nitidez, sobretudo nas zonas mais para sul de Tamanrasset, onde tudo se transforma numa planície que continua para sempre. A paisagem inóspita causa um primeiro impacto igual ao do sol: bate-nos com força e recorda-nos de que não estamos em casa mas sim num planeta estranho. Mas depois vamo-nos dando cada vez melhor.

A poeira no ar é a única coisa que me incomoda aqui. Enquanto escrevo isto ouço uma grande ventania lá fora que levanta poeira: sinto-a logo no nariz, custa-me a respirar e entrego-me à mercê dos pêlos das minhas narinas.