26/08/2007

Doucement

Ao meu lado na carrinha seguia o Belaissa, velhote bonacheirão que nesse dia acabou de trabalhar mais cedo devido a uma avaria na sua máquina e decidiu acompanhar-me nas minhas andanças pela obra. A certa altura, pergunta-me a quantos metros de profundidade vai o furo. Respondo-lhe que vinte e cinco. Faz um ar espantado, como qualquer vedor que se preze, e não fala mais no assunto.

Durante alguns dias levei comigo três operadores de máquinas argelinos na viagem para a obra: Belaissa, operador de giratória, Hamza, operador de motoniveladora, e Bouguessa, operador de bulldozer. Nos primeiros dias íamos calados, talvez por causa do sono normal àquela hora da madrugada, talvez por causa do nosso desconhecimento quase geral da língua francesa, talvez por eu lhes ser ainda estranho na altura. O facto é que, a pouco e pouco, fomos começando a conversar.

Não é tarefa fácil conversar com eles. O Belaissa e o Hamza só falam árabe, praticamente. Era o Bouguessa quem traduzia para francês o que eles diziam num árabe polvilhado de francesismos. Como os meus conhecimentos da língua francesa também deixam muito a desejar, recorria a pequenas expressões francesas que todos os argelinos conhecem: ‘pas de problème’, ‘doucement’ e ‘comme ça’, para citar as mais simples. Utilizava expressões novas que o Bouguessa dizia, que já sabia que as compreenderiam quando eu as usasse, e lá nos fomos entendendo. Fui aprendendo algumas palavras simples em árabe por cortesia do Belaissa, que fez trave-mestra em me ensinar qualquer coisa da sua língua. Sempre que eu lhe dizia que não conseguia decorar todas as expressões que ele me ensinava, ele sorria e dizia:

- Doucement, doucement – que, em árabe, é algo como ‘bechuia, bechuia’.

E passávamos assim as viagens de ida e volta. Fomos começando a conhecer-nos e agora damo-nos bem. Apesar de já não ser eu a levá-los e de passar menos tempo com eles, cumprimentam-me efusivamente quando me vêem. O Belaissa já me dá dois beijos: os homens árabes cumprimentam-se com dois ou quatro beijos, consoante o grau de intimidade. Rio-me bastante com o Bouguessa que, como dizem alguns portugueses, combina na perfeição com a máquina que conduz, por ser grande e desengonçado.

Um dia convidaram-me para ir ao dormitório deles, onde me mostraram vídeos musicais de um miúdo cantor, que tinha quinze anos de idade e um boné da Puma na cabeça. Pelo que constatei, esse miúdo é um artista relativamente conhecido no Magrebe: o primeiro vídeo que vi foi filmado num salão qualquer em Marrocos. Nele, o jovem músico cantava em dueto com uma rapariga da sua idade e ia-se abraçando a todos os músicos excepto ao baixista. Senti a diferença cultural entre nós acentuar-se quando me apercebi de que não conseguia gostar das músicas do rapaz – que tinham todas o mesmo efeito de alteração da voz da canção ‘Believe’ da Cher – e de que não me conseguia abstrair da fraca qualidade dos vídeos, em que algumas cenas se repetiam várias vezes ao longo da peça. E, naquele momento, senti-me incapaz de apreciar este aspecto de uma cultura diferente: seria apenas uma questão de gosto pessoal ou uma barreira interpretativa criada pela sociedade ocidental de onde venho? Vá-se lá saber. No entanto, vejo os meus colegas portugueses tão integrados aqui, vivendo como se sempre tivessem pertencido a Tamanrasset, que concluo que é uma questão de tempo até me habituar também. Primeiro, porque em Portugal também há bonés da Puma. E depois, porque – e já que esta obra é de uma estrada – “o tempo é o melhor cilindro”, palavras do nosso técnico de laboratório. Ou como diz o Belaissa:

- Doucement, doucement.

25/08/2007

O empate

A certa altura, durante um Benfica – Vitória de Guimarães que não despertava grande interesse a nenhum de nós, o António entra na sala de convívio com duas garrafas de água na mão. Tinha acabado de chegar do estaleiro de In-Guezzam e informa-nos de que os guardas tuaregues que lá trabalham tinham capturado duas cobras venenosas. Mataram uma delas mas a outra ainda continuava viva: cada qual em sua garrafa. Como o jogo não atava nem desatava, transferimos a nossa atenção para a garrafa com a cobra viva.

Alguém tinha feito vários furos na tampa para o animal poder respirar. A cobra encolhia-se no fundo da garrafa e de vez em quando esticava-se para cima e abria a boca em protesto. Digo eu que em protesto: podia ser fúria, medo, ou até sede de vingança, como tinham dito os guardas tuaregues. A fazer fé no que eles disseram, aquele que capturar uma destas serpentes deve matá-la de imediato. Caso contrário, ela persegue o captor e não descansa enquanto não lhe der uma dentada. Disseram também que ela consegue saltar a uma altura de cinco metros quando ataca. Todos estes factos, impossíveis de confirmar por nós portugueses, fizeram toda a gente esquecer o Benfica – Guimarães que, ainda por cima, avançava pela segunda parte com um empate a zero.

A cobra continuava a subir e descer a cabeça, abrindo a boca e mostrando uns pequenos dentes retrácteis que não auguravam nada de bom. Era amarela, da cor da areia, com manchas acastanhadas. Passaria completamente despercebida por qualquer um de nós, e toda a gente comentava isso. O seu veneno – pelos vistos fatal – não era ameaça agora, já que estava separada do resto do mundo por uma garrafa de plástico. Daí a irritação da cobra: estar-se preso numa garrafa de plástico, sentir-se reduzido a uma atracção circense e assistir a um empate do Benfica é frustrante e abala qualquer um.

Talvez seja por isso que, quando encheram a garrafa de álcool, ela aceitou bem o destino que se afigurava inevitável desde o momento da captura, e desceu a cabeça pela última vez.

Desde a captura da cobra e da do dia seguinte, em que trouxeram para o estaleiro de Tamanrasset dois escorpiões mortos, algumas pessoas, incluindo eu, avisamo-nos mutuamente quando estamos no deserto para termos cuidado com as cobras. Meio a brincar, meio a sério. Talvez seja mesmo caso para se ter cuidado: é que, como é evidente, nem todas as cobras aceitam de forma tão pacífica um empate a zero do Benfica.

15/08/2007

Le taxi jaune

Mandei parar o António, que passava a meio da manhã pela frente de obra a caminho do estaleiro de In-Guezzam. Eu ainda não o tinha visitado, pelo que lhe pedi para me mostrar o caminho: consta que para lá chegar é preciso estar atento aos poucos pontos de referência que existem e não convém mesmo nada tentar lá chegar sozinho pela primeira vez, sem se conhecer o percurso, sob risco de se acabar perdido. O António concordou e eu fui atrás dele na minha carrinha, seguidos pelos dois jipes da gendarmerie que o estado argelino fornece como escolta. Segui-lo não foi tarefa fácil porque ele anda muito depressa e, com a grande quantidade de pó que os carros levantam, é preciso manter uma distância considerável ao veículo da frente para se conseguir ver alguma coisa. Mas bem ou mal lá o fui seguindo. Passámos o ponto mais a sul que eu conhecia até à altura, o sítio onde está o esqueleto de um carro amarelo que, por ser um objecto invulgar e saltar à vista, se tornou uma referência para quem passa por aqui: tuaregues, argelinos, contrabandistas e portugueses chamam-lhe ‘le taxi jaune’.

Verifiquei que, com efeito, o percurso desde o início do nosso troço da estrada até ao estaleiro de In-Guezzam é complicado para quem não o conhece. É uma planície de areia a perder de vista, e mesmo os montes de pedra que são frequentes mais a norte surgem apenas de raro em raro no horizonte e mesmo assim só se vêem se o dia estiver limpo de poeira. Naquele dia, não era o caso: O horizonte estava completamente oculto pela areia em suspensão no ar, e a única coisa que se via era o chão, que se transformava gradualmente num céu acastanhado uma centena de metros à nossa frente. As únicas referências do caminho são uns arbustos e umas árvores (poucas) que mostram o percurso para sul: existe esta vegetação devido a uma oued que a vai regando esporadicamente.

Ao fim de alguns quilómetros, talvez trinta, vêem-se “as mamas”, duas montanhas que servem de confirmação de que se está no caminho certo. Poucos quilómetros depois desses montes fica o estaleiro novo, de onde vai ser dado apoio directo à obra, por a estrada passar lá ao lado. As condições ali são piores do que no estaleiro de Tamanrasset por culpa do clima. Faz muito mais calor – os colegas que o estão a construir já registaram 52 graus – e há imensas tempestades de areia devido ao vento fortíssimo.

Ao sair da carrinha comprovei na pele aquilo que se adivinhava através dos vidros: calor e pó imensos. Não se via o sol, e grande parte da sua luz não atravessava a nuvem de areia que cobria tudo. O calor, esse, fazia-se sentir: não se estava bem em lado nenhum, só dentro da carrinha com o ar condicionado ligado.

Depois de fazermos o que ali fomos fazer, incluindo almoçar no refeitório, o António levou-me até à pedreira que vai extrair pedra e fabricar as misturas betuminosas a aplicar na estrada. Fica perto, a cerca de 3km do novo estaleiro. Com o tempo fechado como estava, não se via a mancha clara das rochas, mas ao chegarmos perto consegui ver as línguas de pedra branca azulada a rasgar a superfície da areia que nesta zona está coberta de pequenos seixos. No cimo dos montes, pedras negras. Na planície, pedras brancas. Uma paisagem invulgar: bucólica, vá. A pedreira ainda estava em construção. Máquinas, contentores e peças enormes, tudo espalhado pelo solo, por entre as rochas, sob um céu daqueles, é uma imagem de desolação que a princípio nos cativa e depois nos desencanta. A pedra branca será extraída e utilizada como agregado nas misturas betuminosas.

Aqui, instruímos dois argelinos condutores de pesados para levarem os respectivos camiões, já carregados da pedra branca azulada, a uma outra pedreira que existe mais a norte. O objectivo era transformar esta pedra em brita para se ensaiarem as características do material e, como a nossa pedreira ainda está em fase de construção, iríamos britar a pedra nessa outra pedreira argelina. O problema é que as pessoas que já lá tinham estado não se lembravam muito bem de onde ficava. O Carlos, colega topógrafo que encontrámos na nossa pedreira a fazer um trabalho qualquer, já lá estivera duas vezes e recordava-se vagamente do local exacto. ‘Vagamente’, no deserto, não chega: não há grandes pontos de referência para nos guiarmos, e é fácil perdermo-nos. No entanto, como qualquer topógrafo que se preze, o Carlos estava munido de um aparelho GPS, o que nos permitia aventurarmo-nos sem risco de nos perdermos.

Ele sabia que o caminho para a pedreira argelina começava no táxi amarelo. Seguimos então a estrada para norte até o encontrarmos, e depois virámos para oeste. Conduzimos nessa direcção uma vintena de quilómetros, com o Carlos a liderar o grupo. Era uma caravana engraçada: três carrinhas Toyota, dois camiões e dois jipes da polícia. Ao fim dessa vintena, o Carlos parou e informou-nos de que a pedreira não era por ali. Marcou o sítio onde estávamos no GPS, disse aos camiões e aos jipes para esperarem ali e partiu comigo e com o António. Graças ao GPS, pudemos andar às voltas à procura da pedreira sem corrermos riscos. Ao fim de algum tempo atrás das línguas de pedra branca azulada que nos iam aparecendo, encontrámos a pedreira. Ficava a poucos quilómetros do sítio onde tínhamos parado. O Carlos marcou a localização da pedreira no GPS e partimos para ir buscar o resto da caravana.

Quando regressámos à pedreira fomos recebidos, ao entrar, por vários homens surpreendentemente alegres apesar da sua condição de isolamento. Bom, talvez não seja tão surpreendente assim: sei lá há quanto tempo estão eles ali, sem ver caras novas. Um dos homens ria-se por tudo e por nada e apertava-nos a mão sempre que sorríamos. Aceitou britar a nossa pedra para levarmos seis sacos dela: bom negócio, uma vez que recebeu um carregamento de pedra à borla e só nos deu seis sacos. Agora que penso nisso, talvez isso também explique em parte o seu bom humor.

Depois das despedidas efusivas dos argelinos da pedreira, saímos de lá com a brita. Fizemos o caminho de regresso ao táxi amarelo e seguimos para Tamanrasset. Anoiteceu entretanto, e já era completamente escuro quando chegámos ao estaleiro, ainda suados e cobertos do pó branco da britagem.

Em dias assim o jantar sabe bem.

História de cem dinares

Ricardo, o condutor de pesados, conta uma história a uma mesa rodeada de convivas e povoada por garrafas de cerveja. Há uns tempos, perdeu-se no deserto ao volante do camião. Andou horas e horas às voltas sem encontrar o caminho de regresso, até que anoiteceu. Ao fim de algum tempo um carro passou por ele, e o Ricardo fez-lhe sinal para parar e pediu ajuda. O condutor e os passageiros conduziram-no de volta à estrada: levando-lhe todo o dinheiro, comida e água. Bebe um trago da sua cerveja como ponto final na sua história.

A aragem quente entra pela abertura da tenda onde estamos abrigados do sol. Boudellaa, o dono da empresa que está a fazer o primeiro furo, convidou-me a entrar para me mostrar uma notícia que imprimiu da internet, onde se fala da construção da Transsaharienne e dos benefícios que se espera verificarem-se no comércio entre os países servidos por ela. Falou-me da economia, da grande riqueza de recursos, do potencial turístico do seu país e claro, do incontornável tema da política, que o fez recitar alguns nomes de presidentes passados. Depois, falou no contrabando. Segundo ele, esta rota que vai ser transformada numa estrada é também uma artéria do contrabando entre a Argélia e o Niger.

Do Niger vem tabaco para a Argélia. Da Argélia vai leite para o Niger. O Boudellaa fala dos rapazes que escolhem fazer este percurso de noite numa iniciativa paralela de import-export. Estranho o contrabando de tabaco, mas não o de leite: o Niger é dos países mais pobres do mundo, é praticamente constituído apenas por deserto, não tem acesso ao mar e é acusado de manter um regime esclavagista mal explicado à comunidade internacional. Por isso não me espanta o leite mas sim o tabaco. Talvez venha de outro país mais a sul. Isto se o Boudellaa tiver razão.

A seguir, conta-me que a noite passada esta tenda ia sendo abalroada por um camião que não a viu, por seguir com as luzes apagadas. Para a polícia não o ver, diz o Boudellaa, ao sair da tenda para o sol. Põe-se a observar o lento progresso do furo.

Há cerveja no refeitório, mas se a quisermos beber fora de uma refeição, temos de a pagar. Há quem concorde com este sistema por considerar a cerveja um luxo, mas eu penso de maneira diferente: a cerveja é um bem essencial.

14/08/2007

O técnico informático

Por ficar a uma grande altitude, Tamanrasset apresenta um clima mais ameno do que aquele que se espera encontrar num deserto. Apesar de as temperaturas serem altas no verão, as noites de inverno são bastante frias. Agora, em Agosto, é altura de chover bastante nas Montanhas Hoggar.

No escritório, ao fim da tarde, o atarefado Bruno pede-me para ver se o nosso chauffeur de serviço está no estaleiro: é preciso levar a casa um técnico informático de Tamanrasset que veio instalar um novo computador no gabinete da administração. Vou averiguar, respondo-lhe que o chauffeur saiu há 15 minutos. O Bruno está atrapalhado num telefonema interminável, pelo que me ofereço para levar o informático a casa.

Saímos do escritório para um crespúsculo nublado. Agosto é altura de chuva nesta região e já choveu hoje. Espero que não chova novamente: complica o trabalho, enche as oueds de areia, deixa tudo sujo tal é o pó. Entramos na carrinha e começamos a conversar sobre as diferenças culturais que vemos um no outro, tema de conversa recorrente entre todos os argelinos e portugueses. Acabamos inevitavelmente por falar da língua. A língua oficial da Argélia é o árabe, mas o francês é amplamente utilizado: ele confirma-mo, embora diga que o inglês começa a ser cada vez mais instituído aos mais novos. Comenta que deve ser difícil para nós habituarmo-nos à língua, ao que eu lhe respondo que, apesar de muitos portugueses que aqui estão terem vindo cá sem falar uma palavra de francês, conseguiram desenrascar-se devido à necessidade, que é a mãe da invenção. Discuto com ele os significados de algumas palavras, e vamos assim conversando, agora apenas sobre línguas, enquanto ele intercala as suas observações culturais com as direcções da sua casa, que fica nos arredores da cidade. Viro à esquerda na primeira rotunda e sigo sempre em frente.

O técnico informático é um rapaz novo, aloirado, que creio ser do norte do país e pouco mais velho do que eu. Não tem vestes de tuaregue nem fala um francês difícil de entender, duas características da maioria dos habitantes de Tamanrasset. É afável e humilde, fala pausadamente para que eu o entenda e sorri: é simpático.

Tamanrasset não é assim tão grande, mas temos de andar um bom bocado para chegar ao destino. Apanhamos a hora mágica de todas as cidades, aquela em que os candeeiros da rua se acendem e iluminam algo que ainda não é noite mas também já não é dia. Ainda por cima hoje o céu está carregado: espero que não chova outra vez, tudo fica mais escuro, excepto o céu que assume um branco sujo. Passamos por uma rua repleta de lojas - fruta, roupa, souvenirs, telemóveis, peças de automóveis -, que começam a iluminar-se por dentro também, que depois de um bocado passa a estar ladeada por dois muros que não deixam ver para o outro lado: o muro da direita tem pinturas de livros, microfones, calculadoras e outras coisas mais que me levam a perguntar ao informático se aquilo é uma escola. Responde-me que é um instituto de formação, e que por trás do muro da esquerda está um liceu. Ainda me surpreendo quando vejo infra-estruturas assim numa cidade como esta. Viro novamente à esquerda sob instrução do rapaz.

A cidade termina abruptamente e continuamos sempre em frente numa estrada que rasga a paisagem de pedra durante umas centenas de metros, acompanhada por postes de electricidade. Ao fundo, do lado direito, antes do horizonte do céu carregado (espero que não chova mais hoje), vê-se um bairro pequeno, erguido no meio de coisa nenhuma, ocupado por casas construídas num tijolo castanho que combina com os tons terrosos da paisagem. As casas não têm revestimento e o seu aspecto é inacabado: vê-se o tijolo, vêem-se os pilares, vêem-se os varões de aço verticais no topo das casas, como se estivessem à espera de um segundo piso que nunca virá. Apesar dos postes de electricidade, os candeeiros deste bairro não estão iluminados. O pouco dia que ainda resta permite-me ver as ruas cobertas de lixo e o aspecto já gasto – destruídos pelo tempo e pelo clima - de lares que nunca chegaram a ser novos.

O informático diz-me para cortar à direita, numa pequena estrada de terra batida que continua umas duas centenas de metros até chegar ao bairro isolado. Avançando um pouco pelas ruas poeirentas percebo a pouca solidez das casas, a escuridão deste sítio à noite, o pó que nesta zona se levanta do chão para sempre quando é tocado, a grande quantidade de lixo pelo chão. O rapaz informa-me de que chegámos ao seu quarteirão e diz-me que posso parar. Despedimo-nos, ele agradece sorrindo, eu chamo-lhe mon ami a sorrir também. Dou a volta e sigo o percurso inverso, não sem antes olhar para ele a desaparecer por uma rua qualquer. Vejo as luzes de Tamanrasset à frente e comparo-as com a imagem escurecida do retrovisor que desaparece à primeira curva.

E eu espero ardentemente que não chova mais hoje.

Direcção: sul

Acordo às cinco menos um quarto da manhã para estar cedo na frente de trabalho, horário fresco estipulado para Agosto. Bebo o resto de água de uma garrafa de plástico, que atiro para um canto qualquer para junto de outras garrafas vazias. Levanto-me, lavo-me, visto-me e saio para a rua. Ainda é noite cerrada, mas já está calor. Encontro o Vasco e alguns trabalhadores argelinos à porta da cantina, que está a abrir quando eu chego. Tomo o pequeno-almoço e pego em duas sandes e três garrafas de água para levar. Entramos nas carrinhas, saímos do estaleiro e seguimos para sul.

Atravessamos Tamanrasset, que a esta hora está deserta. A actividade diurna começará mais tarde. As ruas são nossas, não me confundo nas rotundas, não me desvio de Peugeots indomados, não abrando nas barreiras da polícia que estão montadas mas não têm agentes a controlar o tráfego. Chegamos à periferia da cidade, que é constituída por uma avenida comprida com candeeiros no separador central e ladeada por coisa nenhuma, apenas deserto. Depressa deixamos para trás o que resta da cidade: a avenida comprida dá lugar à Transsaharienne, que continua para sul, para onde vamos. O Vasco segue com os argelinos à minha frente, é fácil de o ver na noite escura devido à luz vermelha do farol traseiro. À medida que a estrada serpenteia por entre os montes, os seus faróis da frente iluminam as rochas que ladeiam a estrada. Assim seguimos umas dezenas de quilómetros por estrada com pavimento em bom estado. Ligo o ar condicionado da carrinha: são cinco e meia da manhã e já está imenso calor.

Ao fim de algum tempo, vejo à minha esquerda um clarão muito tímido no céu: é o sol que aparecerá daqui a algum tempo. O pavimento bom acaba onde estão as máquinas de uma empresa argelina que tratará de reabilitar este primeiro troço. Agora estão paradas, mas daqui a algumas horas começaram a trabalhar ao seu ritmo vagaroso. Desviamo-nos da estrada por uma pista que segue a leste do traçado principal. Como todas as pistas, é constituída apenas por rodados de veículos no solo, embora devido à proximidade de Tamanrasset esta pista esteja bem definida e seja fácil segui-la. As carrinhas levantam pó que demora muito a pousar, e seguem em frente por entre árvores raquíticas, arbustos e pedras. Mais à frente, regressamos à estrada principal. O clarão a leste foi-se tornando um pouco mais evidente, permitindo ver já algumas nuvens pequenas e escuras, ainda cheias de noite.

O pavimento da Transsaharienne nesta zona é velho e esburacado: vão-se conhecendo e evitando os buracos. As rochas que ladeavam a estrada e eram iluminadas pelos faróis do Vasco ainda há pouco começam a ser cada vez mais escassas, deixando adivinhar a planície mais à frente. Depois de mais umas dezenas de quilómetros, quando o pavimento acaba de vez e dá lugar à terra batida, já os faróis não iluminam quase nada devido à claridade que vem da esquerda. As nuvens que o céu da noite escondia deixam de ser segredo: são poucas, e as da esquerda assumem tons amarelados por baixo e acinzentados por cima, devido ao sol que já lhes bate por baixo. Um pouco acima do horizonte, existe uma zona no céu que, devido à areia no ar, fica mais clara que tudo o resto e consegue dizer-se com exactidão que é ali debaixo que o sol vai nascer. Abro um pouco a janela e sinto o calor cada vez maior. Fecho-a novamente por causa do pó que as carrinhas levantam.

Continuamos em frente, já de faróis desligados. A estrada de terra batida começa a ser descontínua, havendo pequenos troços onde já não existe nada. A Transsaharienne confunde-se com as várias pistas que ali seguem para sul, num vale povoado por algumas árvores pequenas. Ao fim de cerca de 70km chegamos ao início do troço que vamos reabilitar. Reparo que o Vasco abranda e abrando também, sem perceber porquê. Ao olhar através do vidro, reparo que ele e os argelinos olham para a esquerda e olho também. Acima do horizonte está o sol, já completamente erguido sobre as montanhas. Devido à areia que cobre sempre a linha do horizonte, pode olhar-se para o sol directamente para se ver um círculo cuja cor se altera gradualmente do laranja a um amarelo pálido, de baixo para cima. Nas nuvens, o amarelo expulsou quase todo o cinzento, pelo que tenho a certeza de que elas têm sabor a baunilha.

Retomamos a viagem, que está quase no fim. O sol vai-se erguendo cada vez mais sobre a areia em suspensão no horizonte e torna-se cada vez mais difícil de olhar directamente para ele. Agora, a estrada voltou a ser apenas de terra batida, e assim continuará até ao nosso destino. Quando sairmos das carrinhas para trabalhar e começarmos a suar, já o sol assumiu a sua faceta implacável de astro luminoso e quente: as nuvens voltaram a ser feitas de água.

13/08/2007

Monte Hadriane

Antes de me deitar, abri a persiana com a máquina fotográfica na mão, embora já não tivesse esperanças de ver o famoso céu estrelado do deserto. Estamos demasiado perto de uma cidade e há sempre demasiada poeira no ar para que se consiga ver o céu nocturno nitidamente. As luzes da cidade iluminam as partículas de poeira, o que cria uma grande luminosidade sobre a cidade e não permite ver bem o céu. Ponho a cabeça de fora, olho para cima e vejo o que estava à espera: uma ou duas estrelas e o resto do céu escondido. De repente vejo um flash à minha direita e reparo que, na janela do quarto ao lado do meu, está o Rogério de máquina fotográfica em riste com o mesmo intuito que eu. Chamo-o e comento que até no deserto somos vizinhos: em Portugal, vivemos na mesma cidade e somos praticamente vizinhos, mas só nos conhecemos em Tamanrasset.

Conversamos durante um bocado sobre as impressões que temos disto. Ele chegou à Argélia uns dias antes de mim, um pouco a contragosto. A realidade é que toda a gente que tenho conhecido desde que cheguei está cheia de saudades e vontade de ir embora. Consideram o local duro, o povo difícil, o trabalho árduo, e têm saudades da vida que tinham em Portugal. O Rogério ainda está anestesiado, creio, por ter chegado há pouco tempo, embora esteja a ambientar-se bem. A conversa acaba por chegar ao tema das dificuldades iniciais aqui na obra.

Os primeiros que aqui chegaram passaram um mau bocado. Tenho bastante sorte por chegar cá e encontrar à minha espera um quarto que é arrumado todos os dias, uma cozinha funcional, uma antena parabólica que nos traz televisão e internet. Os colegas que aqui vieram no início de tudo viviam em casas alugadas com condições muito pouco confortáveis, tinham que tomar banho na casa de uns e ir cozinhar a casa de outros, não comunicavam com Portugal, não tinham meios de transporte próprios, enfim: várias circunstâncias que me levaram a gostar ainda mais deste estaleiro.

Diz quem está cá há muito tempo que o que custa não é a primeira viagem para cá, mas sim a segunda. Depois de uns meses cá, passamos umas férias em Portugal, e na hora de voltar para a Argélia é-se assolado por um desespero enorme. É a opinião de quem já passou por isso, e várias pessoas me disseram o mesmo. Eu e o Rogério ainda temos que esperar para ver se é mesmo assim, apesar de sabermos que é isso que nos espera. Vem assim à baila o assunto do Monte Hadriane, que já ambos conhecemos. O Monte Hadriane é uma formação montanhosa escarpada com uma forma incomum, que se vê de Tamanrasset e do nosso estaleiro quando está bom tempo e há pouca areia no ar. Mas quando a poeira e a areia no ar são tais que nem o Monte Hadriane se vê, todos os voos de e para Tamanrasset são cancelados. Consta que os portugueses que estão quase a partir de férias começam a deitar muito o olho ao Monte Hadriane, preocupados, porque se este não se conseguir ver no dia da partida, as suas férias são adiadas.

Sorrio porque me enternece este tipo de pormenores e porque já adivinho que, por ironia, vou ter umas férias adiadas devido à areia tapar o Hadriane. Despeço-me do Rogério até amanhã, desligo a máquina fotográfica e, admitindo a minha primeira derrota contra a areia em suspensão, desisto de tentar fotografar as estrelas.

Tamanrasset

Tamanrasset – ou Tam, como carinhosamente lhe chamam os argelinos – é a maior cidade do Saara central e a mais isolada da Argélia. Considerada a “capital do Saara”, devido à existência de água e solo fértil em quantidades invulgarmente abundantes em climas desérticos e à sua história como entreposto comercial de várias rotas do deserto, Tamanrasset sobrevive com base no comércio e na agricultura e alberga cerca de 70.000 habitantes (sendo a maior parte constituída por Tuaregues). Fica situada a 1.400 metros de altitude nas Montanhas Hoggar (ou Ahaggar), o que torna o seu clima um pouco mais ameno do que noutras regiões do deserto. A paisagem é maioritariamente constituída pelas rochas vulcânicas das Montanhas Hoggar. Como todas as grandes cidades da Argélia, Tamanrasset tem um aeroporto doméstico que disponibiliza apenas voos da Air Algerie para Argel, que fica a cerca de 2.000km.

Pelo que pude ver desde que aqui estou, Tamanrasset é uma cidade grande demais para ser uma vila, embora tenha o aspecto de uma. As casas são baixas e têm tons de castanho, vermelho e amarelo. Os lancis dos passeios são pintados às riscas vermelhas e brancas. As ruas principais são pavimentadas e as secundárias são em terra batida. Muitos passeios são cobertos por arcadas vermelhas e brancas encimadas por traves de madeira, extremamente bonitas. Há imensas lojas em todas as ruas, como cafés que servem apenas água, chá e sumo, pizzarias, frutarias, mercearias, mercados, lojas de ferragens, roupa, souvenirs, pneus e peças para automóveis: todas situadas em edifícios de aspecto descuidado, excepto as lojas das redes móveis argelinas, como a ALG Mobilis e a Djezzy, que têm um interior cuidado, limpo e modernamente mobilado como aquelas a que estamos habituados em Portugal. Durante o dia, a cidade fervilha com actividade. Argelinos do sul e do norte, malianos que fugiram do seu país à procura de vidas melhores, bandidos do deserto que procuram passar despercebidos e tuaregues que descansam do deserto misturam-se nas ruas, praças e esplanadas, criando uma mistura engraçada de povos e cores. É frequente verem-se tuaregues de óculos de sol ao volante de jipes ou a falar ao telemóvel. Os homens andam de mão dada e cumprimentam-se com dois ou quatro beijos na cara, dependendo do grau de amizade. E, de vez em quando, encontra-se um turista europeu no meio desta caldeirada de culturas africanas.

O parque automóvel é também sui generis. Exceptuando os jipes de instituições estatais e uma ou outra carrinha todo-o-terreno, quase todos os carros estão a cair aos bocados. Há imensos Peugeots e, entre estes, há imensos 504. O trânsito é muito mais calmo que o de Argel, embora seja igualmente desordenado: é mais fácil habituarmo-nos do que pensamos. Uma coisa que me faz imensa confusão é que, na Argélia, quem entra numa rotunda é quem tem prioridade, obrigando quem já está na rotunda a ceder passagem. O que vale é que, como a nossa obra tem algum relevo para esta zona e a nossa empresa veio dar muito emprego à população, somos bastante considerados pela cidade e a polícia é branda. Há imensas barreiras policiais por toda a cidade, como também já havia em Argel: abrandamos, se for de noite pomos os mínimos e acendemos a luz do habitáculo para que nos consigam ver a cara, cumprimentamos e passamos.

Há cabras vadias à solta pela cidade, que é frequente encontrarmos a comer papel, plástico e lixo diverso. Não creio que seja uma estratégia das autoridades governamentais de Tamanrasset para tentar limpar o imenso lixo que há por toda a parte: as cabras vêm do deserto que rodeia a cidade, que tem alguma vegetação, à procura de comida. São fáceis de encontrar numa oued grande, cheia de lixo, que atravessa Tamanrasset.

Trabalho com vários argelinos de Argel e nenhum deles gosta de Tamanrasset, apesar de entenderem que os europeus possam a achar engraçada. É realmente um destino turístico muito exótico, embora numa perspectiva argelina seja apenas uma cidade pobre, muito militarizada e subdesenvolvida. Muitos argelinos de Tamanrasset querem sair daqui para sempre, e muitos europeus querem vir para aqui uma semana ou duas: e esta é a melhor descrição que consigo fazer.

12/08/2007

Pequena nota ligeiramente técnica para que se percebam textos futuros

A obra chama-se “Réhabilitation de la Transsaharienne entre Tamanrasset et In-Guezzam sur 175km”. A Transsaharienne é uma estrada que ligará Argel, capital da Argélia, a Lagos, na Nigéria, com algumas derivações para a Tunísia, Mali e Chade. Três quartos de toda esta estrada estão completos: a restante distância é constituída por pistas do deserto, troços em terra batida ou estrada antiga em mau estado de conservação – ou simplesmente por nada.

A distância entre Tamanrasset e In-Guezzam ronda os 400km. A empreitada em que trabalho consiste em reabilitar (e, em alguns casos, construir de raiz) 175km desses 400: mais ou menos a meio. O nosso troço da Transsaharienne intersecta várias oueds.

‘Oued’ é uma palavra árabe que significa ‘rio’ e que foi adoptada pela língua francesa para se referir aos cursos de água irregulares, comuns nas zonas desérticas, onde só existe água após uma chuvada. Se a chuva for forte, a oued enche de tal forma que demora horas a escoar a enxurrada de água.

Quando uma estrada intersecta uma oued, a solução imposta pelo estado é a construção de um muro de betão em cada lado da estrada e um muro de gabiões na berma jusante (que dissipa a força da água), para impedir que a enxurrada destrua o terreno da fundação da estrada e a faça ruir. Quando a oued seca, a estrada fica invariavelmente coberta de areia e pedras. Tecnicamente, é uma solução pouco fiável, mas bem mais económica do que construir pontes.

Belaissa

Tudo aqui é muito diferente e vêem-se imensas coisas novas todos os dias, mas o que me espantou mais até agora foi ver um velhote árabe a procurar água em pleno deserto.

Para abastecer de água as máquinas da frente de trabalho e o estaleiro futuro, é preciso abrir poços no deserto. A wilaya (divisão administrativa da Argélia que equivale aproximadamente ao distrito português) tem um departamento de recursos hídricos que nos indicou algumas zonas onde há probabilidade de encontrar água. Vão ser abertos três furos para captação de água ao longo do traçado, todos com mais de cem metros de profundidade.

Hoje tive oportunidade de visitar o local onde vai ser aberto o primeiro furo. Já lá estava a maquinaria necessária à operação, restava apenas saber o local exacto onde furar. Essa tarefa tinha sido delegada ao Belaissa, um velhote de Argel que quase não sabe falar francês. O Belaissa pega num fio com duas chaves de porcas atadas na ponta, põe este aparato a girar e começa a caminhar ao acaso. Depois de dar umas voltas pára num sítio e aponta para o chão, sorrindo. Apanha várias pedrinhas do chão e começa a deixá-las cair uma a uma, enquanto continua a girar o fio com as chaves de porcas na ponta. Passados uns segundos, pára de rodar as chaves e conta as pedras que lhe ficaram na mão: quinze. Informa-nos então de que há água a quinze metros de profundidade. Perguntei-lhe como é que ele fazia aquilo e ele sorriu ao apontar para o céu e depois para o seu coração. Disse-me uma palavra em francês: sangue. Olhei para ele com um sorriso de espanto enquanto o Vasco, um colega meu, me explica:

- Temos que acreditar nesta gente. Há uns dias tentei fazer o mesmo e girei o fio, mas ele disse-me para não o girar, para não fazer força, e o fio parou. Depois, ele agarrou-me no pulso, sem rodar nem nada, e as chaves começaram a rodar.

Costumo ser céptico nestas coisas, mas a verdade é que o Belaissa tem algo que me leva a acreditar nele. Não sei se é o seu ar bonacheirão, se é a sua experiência nestas andanças, se foi a forma humilde como apontou para o céu e depois para o seu peito: não sei. Sei é que vou andar bastante atento a este furo.

08/08/2007

C'est bon?

Entro ao serviço na altura de pagar salários aos trabalhadores argelinos. Homens de túnicas coloridas e turbantes fazem fila à porta do escritório para receberem o dinheiro e vão entrando um a um no escritório. Dei uma mãozinha nesta tarefa: dava-lhes o envelope com o dinheiro e o recibo para assinarem. Poucos sabiam o número de funcionário, pelo que tive que os procurar na lista pelo nome e isso não é nada fácil, porque a forma como eles pronunciam o nome deles é diferente da nossa. Além disso, existe a dificuldade do nome em si: Abdelkader, Reggadi, Chinoune, Melloul, Ouankara, Abderramane, Boukhanchouche. Mas o mais comum é, efectivamente, Mohamed.

Sentam-se, cumprimentam-me, recebem o dinheiro e contam-no muito devagar à minha frente. Aliás, os homens contam-no sempre, as mulheres nunca o contam. Muitos deles contam-no de uma maneira bizarra: tiram uma nota de 100 dinares e põem-na de lado para a contarem só no fim. Acabam de o contar e eu pergunto-lhes:

- C’est bon?

E assinam o recibo.

Ao receber o dinheiro, um ajudante de cozinha, rapaz jovem e brincalhão, deixa uma moeda de 2 dinares sobre a mesa e empurra-a para mim sugerindo-me que compre uma pastilha:

- Tenez, achetez une gomme.

Ri-se alto, levanta-se, vai-se embora. E leva a moeda de 2 dinares.

O estaleiro e a perspectiva de chanfana

O estaleiro da obra fica ao lado da cidade de Tamanrasset, que se pode ver a várias centenas de metros de distância. Em bom rigor, este estaleiro era o de uma outra obra, já terminada, mas serve de base de vida enquanto o novo estaleiro não está pronto. Esta outra obra foi a reabilitação de um troço de estrada existente entre Tamanrasset e In-Amguel, que fica a cerca de 100km a norte daqui. O novo estaleiro, para onde seremos transferidos daqui a algum tempo, fica a cerca de 130km a sul de Tamanrasset, em pleno deserto do Saara. O pessoal desta obra designa esse novo estaleiro por “estaleiro de In-Guezzam”, embora em bom rigor a cidade de In-Guezzam ainda fique bastante longe dele, mais para sul: digamos que ficará mais ou menos a meio caminho entre as duas cidades.

As condições no estaleiro onde estou agora são de bom conforto. Quartos individuais, cantina com comida portuguesa e cerveja (que foi complicada de conseguir, uma vez que a Argélia é um país maioritariamente islâmico), escritórios, serventia de quarto, televisão portuguesa por cabo, telefone, internet, mesa de matraquilhos, baralho de cartas e duas cabras e um cão que andavam por aqui à solta e foram apadrinhados pelo pessoal da obra. Teremos todas estas condições no novo estaleiro, excepto as cabras e o cão: não me parece que levem para lá bicharada.

07/08/2007

O que os olhos vêem

Quando acordei no primeiro dia a seguir à viagem, saí do quarto e olhei em volta. O solo é constituído por areia, pedra e uns arbustos rasteiros dispostos ao acaso de raro em raro. Ao fundo vêem-se várias montanhas com formas invulgares, um pouco esbatidas devido à areia que está sempre no ar e impede de ver o horizonte. O céu estava completamente branco. Não se viam nuvens, não se via o sol, estava muito vento e muito calor. Lá ao fundo viam-se alguns telhados de Tamanrasset. Tudo se mostrava em tons claros de um castanho seco, excepto o céu, sempre completamente branco. Ao fim da tarde, descobri que estas são as condições de mau tempo em Tamanrasset: nesse dia choveu torrencialmente.

A viagem

A minha viagem começa num Chevrolet Matiz de aluguer que dança (com dois pés esquerdos) quando atinge os 130km/h. Ainda está a chover, como na noite anterior, e assim continua durante todo o percurso na A1, durante Lisboa e durante o aeroporto, onde vários cartazes celebram a abertura do novíssimo Terminal 2: "se é para Portugal, há um novo terminal". Encontro-me com o meu chefe, o Jorge, no balcão do check-in. O Jorge é um homem alto, entroncado, com voz grossa, cabelo já meio grisalho e atitude desenrascada. Fazemos o check-in, tomamos café, conversamos, embarcamos, voamos, aterramos no aeroporto Charles de Gaulle em Paris: sem história.

Almoçamos duas fatias de pizza cada um e tomamos café tranquilamente, como se fôssemos portugueses. Com a conversa, atrasamo-nos para o embarque do avião para Argel, que parte em 25 minutos. À nossa frente há uma fila de mais de cem pessoas. O Jorge, sempre despachado, convence uma funcionária do aeroporto de que acabámos de chegar de Lisboa num voo que se atrasou e passamos à frente de toda a gente. Como se fôssemos portugueses. Depois de mais um voo sem história, que passo a dormir (finalmente, o sono!), aterramos em Argel.

À saída do aeroporto, sinto um bafo quente e húmido que me diz “estás em África”. Adoro calor. Um colega, o Gustavo, vem buscar-nos ao aeroporto de carro e, enquanto nos leva para a sede argelina da empresa, começa a discutir assuntos de trabalho com o Jorge. Indignam-se com as dificuldades de trabalhar neste país, como se fossem portugueses. Aproveitei para olhar para tudo, e esta curta viagem de uma dezena de quilómetros pelas ruas de Argel faz-me ter vontade de passar muito mais tempo nesta cidade. Esta cidade tem quase 4 milhões de habitantes e esse facto é bem visível na confusão que há por todo o lado a esta hora. A arquitectura dos edifícios corresponde ao que se espera encontrar num sítio destes, embora surpreenda sempre. Há imensos terrenos baldios ladeados por pequenos prédios de habitação ladeados por terrenos baldios. O trânsito é infernal e os automóveis argelinos estão em mau estado: o código da estrada não tem grande expressão neste local.

Estacionamos em frente à sede, que fica numa moradia improvisada para o efeito. A rua é estreita, as crianças brincam cá fora e os cães ladram nos quintais. Lá dentro, as salas e os quartos são escritórios completamente equipados. A construção é arcaica e simplista, como a maioria dos edifícios de Argel e de cidades grandes do norte de África. As portas e janelas estão escancaradas por causa do calor e deixam entrar a brisa, os gritos das crianças e os latidos dos cães. O Jorge e o Gustavo conversam num dos gabinetes e eu apresento-me a um outro colega, o Miguel. Ordena-me que o trate por tu e conta-me aspectos da sua vida de Portugal, como se fosse português. Ao fim de um bom bocado, suficientemente grande para já ser noite, e depois de eu me inteirar das principais questões argelinas da empresa com o Jorge e o Gustavo, o Miguel informa-os de que vai fazer o jantar para toda a gente no seu apartamento e que me vai levar para o ajudar. Obedeço com satisfação, porque quero ver um pouco mais de Argel. Entro no carro do Miguel, um Peugeot 407 que, a avaliar pelas mossas e riscos, já está bem habituado ao ritmo das estradas desta capital, tal como o condutor: conduz depressa, nunca cede prioridade, ultrapassa por qualquer espacinho. Ele sabe disso, e refere que não teve outro remédio senão habituar-se a conduzir assim, porque demorava tempos infinitos a chegar a qualquer lado quando conduzia como se fosse português. Só cá está há quatro meses mas já conhece os sítios e as pessoas, fala francês e arranha o árabe: entra num pequeno escritório que dá para a rua para tratar de papelada com um velhote argelino, compra fruta numa pequena mercearia de confiança e pára numa padaria de esquina para ir buscar o seu pão favorito.

Chegamos ao apartamento do Miguel, que é uma surpresa agradável por dentro. Bem mobilado, confortável, acolhedor e fresco. Começamos a cozinhar. A minha primeira tarefa como engenheiro civil na Argélia é picar cebola e alho para um refogado. Jantar: borrego. O Miguel avisa-me acerca da frequência com que comerei borrego, informa-me que quase todos os seus jantares são borrego e que, felizmente, gosta dessa carne. Eu, felizmente, também. Enquanto cozinhamos e ele me conta histórias sobre a sua vivência na Argélia, começamos a ouvir cânticos altíssimos vindos da rua. Mostro surpresa, mas o Miguel informa-me de que é uma mesquita próxima a convocar o povo para uma oração. Diz que no primeiro dia também se assustou com aquele barulho todo porque não sabia o que era, mas o que o assustou mais foi o atentado bombista que houve em Argel no primeiro dia da sua estadia aqui, em Abril. Eu já tinha lido sobre isso, mas é estranho conhecer alguém que sentiu o susto na pele, apesar de não ter sido afectado pela explosão. Agora tem mais uma história para contar, e conta-a com um sorriso divertido: gosto do Miguel.

Enquanto o borrego assa no forno, o Miguel vai até ao quarto telefonar à família e eu ponho-me na varanda a ver a cidade e as pessoas a sair da mesquita: algumas mulheres estão cobertas da cabeça aos pés, outras não. O norte da Argélia é já bastante ocidentalizado, mas no sul, para onde vou, as diferenças são enormes.

O Jorge e o Gustavo chegam, jantamos, conversamos, tomamos café. Saímos de casa mais uma vez atrasados para o voo, como se fôssemos portugueses. Prego a fundo até o aeroporto de voos domésticos, que fica ao lado do internacional. O balcão do check-in já está fechado, mas o Jorge utiliza novamente a sua estratégia de convencer os funcionários do aeroporto de que acabámos de chegar num voo internacional que se atrasou: funciona. Embarcamos no avião para Tamanrasset. Por pura sorte, a empresa reservou-me para este voo um lugar em primeira classe.

Durante o voo para Tamanrasset, que dura umas duas horas e meia, escrevo e a olho pela janela. Apesar de ter sido de noite, é o melhor voo do dia, e não só por ser em primeira classe. Ao levantar, vêem-se milhões de luzinhas, que se vão tornando mais raras à medida que se continua para sul. Ao fim de pouco tempo, as luzinhas resumem-se a grupos de seis, cinco, quatro, num infinito escuro debaixo de mim. Um écran à minha frente informa-me da posição geográfica do avião, actualizada a cada três segundos, por isso sei que ao passar Ghardaïa as luzes terminam de vez e o escuro vence. O avião zumbe no escuro, dando a sensação – qual sensação, a certeza absoluta – de que está parado no nada: escuro em todas as direcções.

Escuro em todas as direcções até que, ao fim de muito tempo, se vê ao longe, no solo, um clarão de inúmeras luzinhas: Tamanrasset. Aterrar em Tamanrasset de noite é indescritível: uma cidade no meio do nada, do escuro completo, de um deserto de areia e pedra que agora não se vê, uma cidade que se orgulha de vencer o deserto como o escuro venceu as luzinhas há bocado, desce-se e percebe-se como é o chão, é-se recebido com música árabe saída de uma coluna do aeroporto, observam-se as pessoas de turbante que fervilham no aeroporto às três da manhã, vêem-se as redondezas, conclui-se o calor que se vai passar, estranha-se tudo como se se fosse português.

No solo, conheço o Bruno, o colega que nos veio buscar ao aeroporto. Leva-nos para o estaleiro da obra por uma estrada que passa rente a Tamanrasset mas não me permite matar a curiosidade acerca desta cidade, nem por sombras. Nem me ralo com isso porque haverá tempo para ver muita coisa: mal me designam um quarto no estaleiro, adormeço finalmente como se fosse um bebé.

06/08/2007

Last night on Earth

O medo de não aguentar o desafio, de atirar a toalha ao tapete, de regressar antes da sensação do dever cumprido por um motivo qualquer ou de existirem imprevistos que impeçam esta experiência da forma que a romanceio (tanto quanto se pode romancear sobre algo que se desconhece), todo esse medo quase me levou a não escrever isto. Tanta ansiedade poderá vir a parecer ridícula quando já tiver passado muito tempo, quer ultrapasse o desafio quer não. Aliás, parece-me ridícula agora: esta semana dormi sempre mal e hoje, véspera da partida, decidi nem sequer me deitar, porque sei que será escusado tentar pregar olho. Mas neste momento não há nada a fazer, estou nervoso e pronto, por isso resolvi vir para a cozinha escrever isto. Creio que é má ideia, porque o meu estado de vigília é tão artificial que não conseguirei escrever nada que preste. Travo muitas vezes a caneta, paro de dar ao dedo e olho para as paredes, ouvindo o silêncio da chuva miudinha lá de fora, do frigorífico e dos ponteiros do relógio com dinossauros coloridos, ornamento da cozinha que sempre funcionou bem sem se atrasar nem precisar de pilhas. Parto por volta das 11 da manhã: Lisboa-Paris-Argel-Tamanrasset.

Conheço o suficiente de mim para perceber que tanta ansiedade se deve ao facto de eu, no fundo, estar seguro de que levarei tudo até ao fim, se depender de mim. Por outro lado, sei que já estão mais colegas meus em Tamanrasset há vários meses e que, para além de provavelmente não se terem ralado tanto como eu antes da partida, estão a conseguir aguentar-se. Os que lá estão, pelo menos: já muita gente desistiu. O recorde de menor permanência é uma semana.

De qualquer forma, esta ansiedade faz-me sentir absurdo e pequenino por dar a isto tanta importância. Será assim tão importante? Estarei a sobrevalorizar isto? Paro de escrever, olho novamente para as paredes, ouço a chuva, o frigorífico e o fiável relógio dos dinossauros e divido-me entre o que me diz o cérebro e o que me sussurra o umbigo. Para o cérebro, sou apenas mais uma pessoa entre tantas, mais um dente na engrenagem, por amor de Deus, não sou uma estrela, não sou um mártir, não sou um aventureiro. Já o umbigo garante-me que será uma experiência única e enriquecedora: claro, ou não fosse a sua tarefa afagar o ego e procurar confortá-lo. Talvez ele não perceba o argumento do meu cérebro, que afirma por sua vez que a busca de experiências novas e extremas, moda actualmente visível nas sociedades de monotonia rotineira, fartura e hedonismo, mais não é que um capricho.

Quando as vozes do cérebro e do umbigo se transformam em zumbidos permanentes e me começam a impedir de ouvir a chuva, o frigorífico e o rigor do relógio dos dinossauros como deve ser, irrito-me e mando-os calar:

- Até têm razão, mas eu vou lá para trabalhar.

Calam-se. Não foi preciso muito. Mas é a verdade: as únicas coisas importantes são trabalho, empenho e eficácia. E isto não será a história de uma viagem. Não será a história de uma aventura. Serão apenas notas minhas que quem quiser poderá ler. Não tenho responsabilidades para comigo, apenas com o trabalho. Por isso cala-te cérebro, cala-te umbigo, calem-se os dois. E chega de falar de mim, porque a verdade é que este texto surgiu apenas graças à insónia: devia era estar na cama em vez de estar sentado à mesa da cozinha a ouvir a chuva, o frigorífico e o relógio dos dinossauros coloridos, espantado com a exactidão das batidas dos segundos. A chuva: tem sido um verão pouco convicto, este. O frigorífico: levanto-me e vou comer qualquer coisa. O relógio: são quase horas, devia ter feito um esforço maior para dormir.

Pouso a caneta. Espero que a viagem amanhã corra bem: ficaria descansado se os dinossauros me garantissem que sim, porque estes dinossauros da minha cozinha têm sempre razão.