19/12/2007

Estes não são os carros de Gary Numan

De vez em quando, uma caravana de carros semi-novos passa pelo deserto em direcção à fronteira. Peugeots e Volkswagens sobretudo. Os locais explicam que se trata de comércio ilegal de automóveis, que são comprados ou roubados na França e na Alemanha e trazidos para o Niger para serem vendidos. Vêm de Argel e passam por Tamanrasset e In-Guezzam. Dão nas vistas no caminho que fazem entre estas duas últimas localidades, porque as viaturas vulgares nas pistas são todo-o-terreno. Por isso, quando alguém vê uma fila de carros urbanos a levantar pó pelas pistas, já sabe do que se trata. Como lhe chamam os locais: "Máfia".

No caminho que separa Tamanrasset da fronteira há imensos esqueletos de carros abandonados. O número de carcaças aumenta à medida que nos aproximamos de In-Guezzam, talvez por o percurso ser mais exigente ou por ser mais difícil de conseguir a assistência mecânica das oficinas de Tamanrasset. Alguns ainda exibem a pintura e permitem distinguir de que carro se trata, mas a maior parte está ferrugenta, amolgada e para lá de qualquer identificação. Alguns foram carros de habitantes locais que a certa altura se cansaram de vez, outros foram veículos de turistas cujas viagens correram mal e uma parte – carcaças de camiões – foi de serviços de transporte vencidos pelo deserto. A posição em que estão é, em alguns casos, reveladora do que lhes aconteceu: alguns carros estão virados ao contrário e outros estampados em pedras. Existe até um cemitério destas carcaças, a alguns quilómetros de In-Guezzam, para norte.

Coisas normais na região que se tornaram míticas. Ao fim de alguns tempos a conduzir nas pistas, apercebemo-nos de que a estrada já existe há muito tempo, não está é nivelada nem alcatroada. Não sei é se, depois de a estrada estar feita, os todo-o-terreno da região vão ficar contentes: estão habituados à exclusividade das pistas e ninguém gosta de perder um monopólio.

Depois de escavarem a areia em redor das rodas da frente, os serventes da obra começaram a empurrar o primeiro automóvel da caravana de três, que estava atascado na areia e não conseguia sair do sítio só com a força dos outros condutores. Dei-lhes uma mão: eu próprio já fui empurrado também. Ao fim de alguns sacões, o carro saiu do sítio. Os condutores agradeceram e continuaram para o sul, onde alguém lhes havia de pagar pela viagem.

17/12/2007

Moula-moula

Omar, o engenheiro argelino, aponta-me um pássaro que passa a voar à frente da carrinha onde seguimos e diz que avistar esta ave é sinal de boa sorte. Chama-se 'moula-moula'. Parece uma andorinha com uma mancha branca na cabeça e costuma andar por sítios onde há água. Os tuaregues e os viajantes do deserto em geral sabem que, se virem um pássaro destes, é porque existe água nas imediações. Segundo o Omar, é um animal simpático que se aproxima de nós desde que, claro, estejamos quietos.

Os camiões-cisterna que transportam água para a obra são verdadeiros destroços de guerra. Ivecos, Berliets, MANs com trinta anos ou mais, decanos das pistas, enchem o tanque de água num poço situado a trinta quilómetros de Tamanrasset e esvaziam-no na obra, a cinquenta quilómetros desse poço. Com o avanço da obra, esta distância tende a aumentar muito, o que levanta algumas questões sobre o desempenho destes veículos no futuro. Quase todos se deslocam a passo de caracol, muitos apresentam sinais de velhice e ferrugem irreparáveis e alguns demoram vários minutos até conseguir engatar a marcha-atrás. Uma boa parte deles tem furos na cisterna e deixam rastos de água por onde passam: os furos são pequenos o suficiente para a água chegar praticamente toda ao destino mas grandes o suficiente para se tornarem caricatos. É vulgar avariarem, condenando os motoristas a passarem noites no deserto. Porém, estes já estão habituados a esses contratempos e fazem-se acompanhar de água e comida, que penduram no exterior do camião. A água viaja em odres – peles de cabritos há muito digeridos – suspensos na lateral da viatura para conservar a frescura, e a comida consiste, em parte, em pedaços de carne pendurados na parte da frente da cisterna. É, eufemisticamente, prático.

Os motoristas convivem com as avarias com a naturalidade com que as pessoas de vida dura encaram as dificuldades. Conhecem as manias ao camião e tentam reparar a avaria com as ferramentas que trazem. Se não conseguirem, mandam o companheiro pedir boleia aos carros que passam e ir à cidade buscar ajuda: é por isso que viajam sempre acompanhados de um ou mais motoristas.

A água, muito necessária aos trabalhos de terraplenagem, é um dos problemas mais graves com que lidamos. E qualquer um de nós cedo se apercebeu de que não podíamos contar com aquilo a que estávamos habituados em Portugal. Em Tamanrasset não é fácil arranjar camiões decentes, mas há já alguns meses que trabalhamos com estes e, mal ou bem, a água lá vai chegando à obra. Às vezes mais mal que bem, mas não há problema: também nós encaramos com naturalidade – aquela com que às vezes se devem encarar as dificuldades – o facto de sermos servidos por estes camiões. Têm décadas de pistas e deserto no lombo, já viveram mais vidas e sofreram mais mortes do que qualquer pessoa e, se virmos bem, nem toda a gente tem o privilégio de trabalhar com verdadeiras relíquias viajantes que, de tão selvagens, até requerem dois ou três homens para as domar.

O pássaro preto aproxima-se de mim aos saltos. Pára a uns três metros de mim e fica a olhar-me de lado. Fico quieto a ver o que ele faz, e o animal aproxima-se cautelosamente dos meus pés para beber a água de umas pequenas poças criadas pelas fugas do tanque de um camião.
- Olá passarito, estás bom?
A ave, ao beberricar saltitando, parecia concordar que os camiões não são, de facto, grande pistola.

10/12/2007

In-Guezzam

A vila – ou aldeia? – de In-Guezzam, no extremo sul da Argélia e a quatrocentos quilómetros de Tamanrasset, é para todos os efeitos o fim da linha. Da nossa linha. Pelo menos, quase: Apenas uma dezena de quilómetros – que serão construídos por nós, portugueses – a separa da fronteira com o Niger. Para lá, estão sítios que posso apenas considerar como sendo míticos e de fantasia, devido ao que se ouve dizer deles e a nunca os ter visto. Ao fim de uns tempos nesta região, começam a conhecer-se histórias de miséria, contrabando, crimes e emigração arriscada. Tudo camuflado e protegido pela areia, pelos montes de pedra e pelas grandes distâncias.

A zona onde há alguma água e verdura, uma rua principal com candeeiros e terra ladeada por casas castanhas que se espraiam em seu redor, lojas de portas abertas a oferecer pão, ferramentas e roupa – a escuridão dos seus interiores sugere-as como frescas, mais pela opressão do calor cá fora do que propriamente pelos seus atributos térmicos –, serviços simples como correios, postos de polícia e bombas de combustível, doze meses de calor por ano e areia por todo o lado – mesmo no vento –, é In-Guezzam. Na rua principal agrupam-se polícias de fronteira, miúdos saídos da escola e automóveis que esperam à porta das bombas que chegue combustível do norte. À volta da localidade pastam cabras guardadas por tuaregues preguiçosos, o que me leva a perguntar ao Sidi Mohamed – que faz parte da nossa pequena comitiva de estudo da subempreitada que ali vamos fazer – o que é que elas comem. Diz ele que este gado é criado do outro lado da fronteira, onde há vegetação, e só está aqui para ser vendido. Dezenas de cabeças.

À hora de almoço, já a comitiva de estudo tinha acabado o estudo, pelo que restava apenas a comitiva. Estacionámos às portas da vila e instalámo-nos num tapete estendido sobre a areia. O Sidi Mohamed informou-nos que a refeição ficaria por sua conta, mandou alguém à cidade chamar um cozinheiro e afastou-se para ir negociar um cabrito com os tuaregues que pastoreavam por ali. É Dezembro mas está calor: desapertam-se camisas, abanam-se t-shirts e viram-se caras na direcção da brisa. Para trás de nós está a vila, para a nossa frente está o areal interminável do qual emergem cabeços arredondados de pedra escura. Do rádio das carrinhas sai música que, misturada com o calor e a brisa, lança a languidez de um verão na atmosfera.

Quando o Sidi Mohamed regressa ao pé de nós com o cabrito, já o cozinheiro está à espera. Numa questão de minutos, o cabrito é degolado e desmanchado na areia. É grelhado num pequeno braseiro que foi ardendo entretanto e ao fim de uma ou duas horas é-nos oferecido numa terrina acompanhado de pimentos e cebola. Até gosto de cabrito, mas neste não toquei. Comi uns pedaços de frango – esse não morrera à minha frente – que tínhamos trazido de Tamanrasset.

Antes de nos fazermos ao caminho ainda ficámos ali um bocado. Parecia mesmo verão. Estávamos numa praia gigante, que tinha de sobra em areia o que lhe faltava em mar. Observávamos os tuaregues que entretanto carregavam o resto do gado caprino para um camião. Aproxima-se uma grande festa islâmica, em que a tradição manda comprar um cabrito e comê-lo com a família: vão conseguir vender todas as cabeças. Quando partimos, ao início da tarde, In-Guezzam está sossegada atrás de nós. Não há grande trânsito nem se vê muita gente na rua. Se calhar, penso eu, quase toda a actividade que traz vida a esta vila é feita fora dela. No Niger e em Tamanrasset. É que, apesar de ser um pardieiro árido e desolador, In-Guezzam tem uma pequena mas importante imagem de limite quimérico entre um nada e um tudo existentes em ambos os lados, ou não fosse uma localidade fronteiriça: para nós e para o cabrito é o fim da linha, mas para muita gente é apenas o início. Aliás: o meio.

Passados vários dias, durante uma viagem para a obra, pergunto ao Sidi Mohamed o que quer dizer ‘In-Guezzam’. No seu francês de fraca qualidade, responde-me que o nome da localidade se refere ao facto de, há muito tempo atrás, se degolarem muitas pessoas naquela zona. Passa-me pela mente um comentário sobre a degolação de caprinos que não consigo travar antes de me sair da boca.

08/12/2007

As flores lilases

Numa rua qualquer de Tamanrasset, dois miúdos, um rapaz e uma rapariga com não mais de três anos, gatinham pelo meio do lixo à procura de algo para comer. Estão praticamente nus e exibem a magreza de quem passa fome a sério. Às tantas, o rapaz sente-se mal e vomita. A menina avança na sua direcção e começa a comer o que ele deitou para fora.

Na televisão estava a passar o festival Eurovisão Júnior, no qual crianças de vários países interpretavam canções acompanhadas de coreografias, apresentadas por um homem louro nos seus trintas vestido com um blazer às flores em tons lilases. Os portugueses assistiam à retrospectiva das actuações dos vários países que antecedia a votação final. Crianças sorridentes de trajes e penteados extravagantes cantavam, dançavam, saltavam, aplaudiam e atribuíam pontos numa amálgama de luz e cor que, segundo era propagandeado de tempos a tempos, era proporcionada em parceria com a Unicef numa iniciativa de angariar fundos para combater a miséria nos países do terceiro mundo. De facto, a imagem da caixinha mágica por vezes dividia-se ao meio para exibir, numa das metades, o festival de música e, na outra, imagens de fome e crianças magras oriundas de um país qualquer que ninguém especificou. Nenhum locutor ou voz-off comentava as imagens de miséria: simplesmente eram lá colocadas como parte de uma edição de imagem definida por um realizador invisível, talvez numa tentativa de sublinhar a mensagem de caridade. Passados alguns segundos, o monopólio do ecrã era devolvido ao apresentador florido e às saltitantes crianças europeias.

Eu estava na sala a assistir ao festival e interrogava-me se mais alguém se apercebia do que se estava a passar. Sempre fui céptico em relação a grandes festas de angariação de fundos para uma iniciativa caritativa qualquer, não por acreditar que o dinheiro não chegue ao destino para que é pedido, mas sim por considerar que a caridade não deve ser feita assim. E as vestimentas e cabelos das crianças pareciam dar-me razão a cada saltinho.

Talvez seja por pensar assim que fiquei surpreendido ao não ficar minimamente aborrecido quando a Bielorússia ganhou e Portugal ficou no fundo da tabela. Nada aborrecido mesmo. Aliás, deve ser tudo impressão minha: de certeza que o dinheiro será entregue, de certeza que a iniciativa terá bons frutos, de certeza que a canção da Bielorússia era mesmo boa, de certeza que as crianças europeias serão felicitadas pela sua boa prestação enquanto as crianças africanas comem o arroz sorrindo, de certeza que toda a gente ficará contente com o resultado, de certeza que o realizador invisível é um génio que nos faz um favor quando nos exibe a miséria durante poucos segundos e no resto do tempo mostra luzes, cores, crianças sorridentes, apresentadores animados e flores lilases.

30/11/2007

Sidi Mohamed

É fácil ver ao longe quando é o Sidi Mohamed, o tuaregue rico, que está à porta do estaleiro à espera de ser recebido. Usa sapatos caprichados, óculos à aviador, relógio dourado e está sempre vestido com uma fatiota típica chamada bazane, uma espécie de grande bata com que cobre o corpo todo. Tem vários bazanes, todos de cores inacreditavelmente berrantes: cor-de-rosa, verde-claro, azul-turquesa, amarelo, lilás escuro e até um com riscas tão coloridas que fariam o arco-íris corar de inveja. É um vigarista de trazer por casa e, como tal, não deixa escapar nenhuma oportunidade, por mais remota ou absurda que possa parecer, de ganhar uns trocos. Ele próprio admite isso e diz que é um "desert bandito". É um subempreiteiro nosso e, por ser uma relação que envolve dinheiro, trata bem os portugueses. Em suma: como muitos árabes da região, é um fura-bolos. No entanto, não deixa de ser uma figura bonacheirona e simpática devido ao seu je ne sais quoi que me faz gostar dele e começar a rir mal o veja ao longe. Cumprimenta-nos efusivamente: aperta-nos a mão, puxa-nos com força contra ele, dá-nos dois beijos na cara, deixa a sua cabeça encostada à nossa e fica assim, muito quieto. Só quando se fala é que ele se afasta, e mesmo assim é raro não nos dar a mão enquanto conversamos. Toda esta manifestação de carinho, típica dos árabes mas inflaccionada no Sidi Mohamed, cai tão mal aos portugueses que chega a ter piada ver alguns de nós a tentar escapar aos seus cumprimentos. É um passarão que faz rir toda a gente.

Por isso é que, ao olhar para as riscas de todas as cores no bazane do Sidi Mohamed que tanto me alegram – e dando um sentido concreto a mais um lugar-comum –, percebo finalmente onde está o pote de ouro no fim do arco-íris.

Chicotadas psicológicas

- O quê? O Mourinho já saiu do Chelsea? – admirou-se o manobrador de cilindro.
- Não sabias? Já faz um mês... – observou o topógrafo.
- Um mês? Faz é dois meses! – corrigiu o director.
- E o Jorge Costa também saiu do Braga há para aí uma semana – voltou o topógrafo.
- Nã, três semanas! – disse o director.
- Eh pá, hoje não acerto uma...
- É o que dá, estar enfiado aqui no deserto... - observou o do cilindro.
E viraram-se novamente todos para a televisão.

29/11/2007

Dez

O velhote percorria a sua obra e, entre as instruções que ia dando aos seus trabalhadores, contava-me por alto a história da sua vida. É um homem simpático que se apresenta como Bob, diminutivo de Boubakeur. Apesar de a sua aparência o denunciar como argelino, a sua postura confere-lhe pinta de europeu: estudou na Argélia, doutorou-se em Londres, viajou um bocado por todo o mundo, criou família em Oran e uma pequena empresa que o trouxe até Tamanrasset, até nós. Caminha ao meu lado, com os seus óculos escuros e o seu lenço à volta do pescoço, e fuma em curtos bafos silenciosos. Apercebo-me de que o Bob diz aos trabalhadores para se esmerarem e se despacharem por minha causa: são nossos subempreiteiros. Fala-lhes em árabe e, para o fazer ver que eu o percebo, pergunto-lhe porque é que ele lhes está a dizer isso. Revela-me que usa o facto de eu estar ali para os fazer levantar o rabo do selim. Diz-me ainda que nunca se deve dizer que o trabalho de um subalterno é bom, mesmo que o seja.
- É um truque de relações humanas - diz ele - Desta maneira, o trabalhador não se sente indispensável e tenta sempre fazer melhor.
Replico:
- Mas, quando trabalhas para outra pessoa, que mal há em elogiarem o teu trabalho de vez em quando?
- Vou contar-te uma coisa que um professor de matemática uma vez me disse. Quando lhe perguntaram porque não dava nota vinte a ninguém, ele respondeu: "Vinte é para o bom Deus, dezanove é para mim, que sou professor, e dezoito é para o Bob."
Percebi a lição. E o velho pôs um grande sorriso antes de dizer que era barra a matemática.

10/11/2007

O mercado

São quase clichés as descrições de mercados em sítios exóticos, e toda a gente que me conhece sabe que sou uma vítima fácil de todos os clichés.

Toda a gente sabe que, quando se compra uma coisa num mercado, está-se na realidade a comprar duas: o artigo em si e o seu cheiro. O aroma das coisas é sempre mais intenso nesses sítios e povoa toda a atmosfera e envolve as lojas, quiosques e balcões, pelo que o dinheiro que se paga pelo que quer que seja que se compre, paga também o cheiro.

O mercado de Tamanrasset não é excepção: num grande terreno de terra batida e lancis mal amanhados, as lojas foram feitas em tendas que formam pequenas ruas e quarteirões de pano. Vende-se de tudo, e mesmo os artigos mais correntes que não dispõem da classificação eufemística de 'artesanato' são de qualidade duvidosa: perfumes, tapetes, tabaco, isqueiros, roupa, calçado, relógios, óculos de sol, brinquedos, produtos de higiene, alimentos. A falsificação de marcas é tanta e tão evidente que leva o visitante a interrogar-se se haverá alguma coisa genuína ali. A resposta depressa lhe chega ao nariz: o aroma de todo o comércio e mesmo das centenas de pessoas que falam alto, cozinham nas ruas e abandonam a loja sem risco de roubos mistura-se no ar e vai conduzindo o freguês por entre as lojas de paredes de tecido, para descobrir que, afinal, não existem apenas perfumes mas sim mil perfumes, não existem apenas tapetes mas sim mil tapetes, não existem apenas relógios, óculos, pulseiras, mas sim mil jóias que, não sendo de ouro ou pedras preciosas (abre-te Sésamo), possuem o mesmo brilho de um tesouro. Semeado em bancadas de madeira e tapetes numa esperança de que amadureçam na vontade de um comprador e ao alcance de um punhado de dinares.

Por isso, quando alguém vai comprar algo tão simples como um maço de cigarros, mesmo que o tabaco seja fracote, faz sempre bom negócio. O preço também nunca é elevado por aí além e existe sempre uma certeza de que os aromas, esses, não carecem de marca registada.

05/11/2007

Wrong kind of blues

Na banda sonora do filme 'A residência espanhola' está incluída uma música chamada 'Ai Du', do guitarrista maliano Ali Farka Touré. Quando vi esta fita, a canção despertou-me a atenção e comecei a ouvir o trabalho deste músico, o chamado "John Lee Hooker africano". Anos depois, já na Argélia, passeava-me pela obra com um CD deste intérprete no rádio da carrinha. Alguns dos argelinos que por vezes me acompanham reconhecem a música e o artista, e cantam a letra incompreensível enquanto abanam a cabeça de olhos fechados.

Os pretos do Niger e do Mali que vão buscar pedras às montanhas para construírem muros de gabiões são mão-de-obra barata para as empresas argelinas. Alguns nem recebem dinheiro: trabalham apenas para comer. Vivem em tendas improvisadas no meio do deserto por toda a duração da sua obra e instalam-se o mais confortavelmente possível. Fabricam cabanas com tábuas e plástico para dormirem, halteres com varões de aço e cimento para se exercitarem, e até guitarras com paus, latas e arames. Alguns, enquanto atiram pedras de um lado para o outro, cantam músicas melancólicas com letras incompreensíveis. As suas músicas, em particular, são o que mais me emociona. Sabe-se lá se são alegres ou tristes, de onde vêm, o que querem dizer, quem as compôs. Quando não há vento e o deserto está em silêncio, as suas vozes enchem o ar, o sítio ganha a banda sonora que se lhe adequa e surge uma atmosfera confortável, como se estar aqui começasse a fazer sentido: da mesma forma que nos filmes a música complementa a acção do ecrã.
É por isso que se ao passar perto dos muros e eles estiverem a cantar, aproximo-me muito devagar para que não reparem que cheguei.

Ao subir para a carrinha para ir fazer um trabalho a um quilómetro dali, o Mustapha, um servente preguiçoso, aponta para o rádio e pede-me entusiasmado:
- Ali Farka, Ali Farka!
Porque já tinha andado antes na carrinha comigo.

26/10/2007

O Dom Afonso Henriques

No dia a seguir a ter chegado de férias, uma sexta-feira, houve jogo de futebol entre portugueses e argelinos. Oito portugueses contra doze argelinos. Muitos portugueses não pegavam numa bola há muito tempo. Eu próprio já não jogava futebol há anos. Perdemos, mas não faz mal: conforta-me saber que a mouralhada já levou porrada nossa que chegue.

O Portugal (Argélia entre parêntesis durante um bocado)

'Congé' é uma palavra que se usa muitas vezes aqui. A política de férias na Argélia é boa, sendo estas por norma longas, sobretudo se se trabalhar no sul. A rotatividade do pessoal do laboratório argelino que fiscaliza o nosso trabalho é grande, e quando partem de férias fazem-no por períodos de um mês ou dois. Em meados de Outubro, foi a minha vez de ir de férias a Portugal. "Moi? Congé."

Quando aterrei em Argel às tantas da madrugada e caía uma chuva miudinha e fria enquanto eu esperava que me viessem buscar, não fazia ideia que, ao chegar a Lisboa no dia seguinte me ia sentir quentinho por dentro. Não devido ao sol, mas ao aconchego e à pressa de viver uma semana intensamente. Não imaginava o prazer que ia sentir ao ter dificuldade em vencer o trânsito da rotunda do relógio, ao acelerar na autoestrada rumo a casa, ao beijar a família, ao abraçar o cão, ao almoçar num restaurante, ao abraçar os amigos, ao tomar um café no café de sempre, ao sair à noite, ao beber uns copos, ao combinar tanta coisa com tanta gente, ao ouvir reprimendas das pessoas com quem não tive tempo de estar, ao contar histórias, ao ouvir histórias, ao dormir num quarto a sério, ao comer comida a sério, ao comer comida de plástico, ao sentir-me confortável finalmente, ao pensar que afinal as saudades eram muitas, ao pensar que afinal tinha mais saudades ainda do que pensava, ao pensar que as saudades não são mais que dias de chuva que fazem dar valor aos dias de sol, ao pensar que a chuva miudinha e fria com que Argel me recebeu às tantas da madrugada não era mais do que um abraço de boas-vindas, ao pensar que afinal de contas o deserto não é assim tão duro, ao lembrar-me - que diabo - que o deserto não custa assim tanto, ao verificar que se eu não fosse tão distraído assim tinha reparado há uns meses atrás no bom presságio que era os dinossauros coloridos do relógio da minha cozinha estarem a sorrir para mim.

14/10/2007

O jejum

Nos meus aniversários, costumo receber uma carta de parabéns de uma instituição para a qual dava sangue quando era estudante. Nesta, desejam com eufemismos comerciais que o meu aniversário se repita por muitos anos para poder continuar a dar sangue. Ou seja, convém que o gajo que dá sangue viva muito tempo para garantir um certo stock: acho alguma piada ao facto de mo dizerem frontalmente logo no meu dia de anos, como se não tivessem vergonha de admitir. É reconfortantemente sincero.

O fim do Ramadão é assinalado por uma festa chamada Aid El-Fitr, cujo nome significa "fim do jejum". É um feriado tão importante para os islâmicos como o Natal é para os cristãos.

Os festejos começaram às oito da manhã com uma reza ao ar livre que juntou imensa gente numa oued que atravessa o centro da cidade. Imensas pessoas fizeram as suas orações em conjunto nesse local, virados para Meca. Depois da reza, veio a hora da refeição que iria vingar o mês de jejum: os crentes comeram imenso, juntaram os entes queridos e ofereceram prendas uns aos outros. As ruas de Tamanrasset encheram-se de vida: as pessoas vestiam roupas melhores e mais coloridas, percorriam as ruas em pequenos grupos alegres e levavam doces e garrafas na mão. A cidade ficou animada até altas horas da noite. Ninguém trabalhou no dia seguinte devido ao feriado e, em alguns casos, a indigestões nos estômagos desabituados a grandes farturas.

A propósito dos parabéns dos senhores do sangue, lembrei-me que, certa noite, acordei com o toque de uma mensagem de texto no meu telemóvel com número argelino. A Mobilis, operadora de telecomunicações da Argélia, desejava-me um feliz Aid El-Fitr. Já foi há algum tempo atrás, mas lembrei-me disso porque enquanto escrevia este texto a nossa ligação à internet da Mobilis foi abaixo. Podia dizer que as felicitações são secundárias relativamente ao serviço pago. Mas o facto é que, quando recebi a mensagem naquela noite, eram quase horas de acordar e já estava, de facto, com um ratito no estômago.

12/10/2007

Assekrem

Lembro-me de uma tarde, nos meus primeiros tempos aqui, em que entrei na sala de reuniões que esperava encontrar deserta e me deparei com uma senhora de meia-idade vestida como as mulheres locais, sentada numa cadeira de costas para a porta que eu acabava de transpor. Nunca a tinha visto. Sabia que ela não trabalhava connosco, até porque ela não estava a trabalhar: lia um livro pequeno e parecia estar à espera de qualquer coisa. Ao ouvir-me entrar, virou-se para mim e cumprimentou-me em português. Depois de alguns minutos de conversa, fiquei a saber que a senhora era professora de História em Lisboa e estava a visitar Tamanrasset e o Hoggar como turista pela segunda vez. O guia que tinha contratado contou-lhe que havia portugueses a trabalharem na zona e prontificou-se a trazê-la ao nosso estaleiro enquanto esperava pelo seu avião de regresso. Estava vestida daquela forma porque tinha perdido a mala durante um voo, pelo que, segundo ela, tinha sido obrigada a comprar roupas locais. Gabou-me a sua viagem e o seu guia: conheceu paisagens incríveis do Hoggar, viu as gravuras rupestres que abundam aqui na zona e conheceu o Assekrem. O Assekrem é uma zona montanhosa com um nascer e um pôr-do-sol magníficos e um dos sítios mais altos da Argélia (estatuto perdido por uns duzentos metros). Já tinha visto fotografias e lido sobre este local antes de vir para a Argélia: muitos turistas vão visitar o Assekrem e passam lá uma noite, para verem o sol a pôr-se e a nascer. Por isso, quando a mulher me perguntou se eu queria ver as fotografias que ela tinha tirado, respondi:
- Não.
Porque sabia que nenhuma fotografia faria jus a uma aurora ou crepúsculo. E porque tencionava lá ir um dia.

A visita ao Assekrem foi combinada com alguns dias de antecedência, o que garantiu uma aderência e organização credíveis. Seria uma caravana de quatro carrinhas com vários portugueses e dois argelinos que trabalham connosco como motoristas de camião. Um deles foi guia turístico num emprego anterior e seria o nosso guia nesta viagem: ninguém sabe ao certo o seu nome, porque todos o tratam pelo apelido carinhoso de Bob Marley. Saímos do estaleiro e atravessámos a cidade, seguindo para leste. O Assekrem fica a oitenta quilómetros de Tamanrasset, o que não implicaria uma viagem longa se não fosse o estado do caminho até lá. Aliás, falar em caminho é um luxo: metade do percurso é sobre pistas de terra batida e a outra metade é sobre trilhos de pedra que põem qualquer pneu em pânico. Portanto, duas horas e meia para cada lado, fora o tempo investido em paragens para tirar fotografias.

A primeira paragem sugerida pelo Bob Marley foi no sopé de um monte com cerca de vinte metros de altura, no cimo do qual estava a ruína de uma guarita construída com pedra local nos tempos da ocupação francesa. As suas paredes interiores estavam cobertas de inscrições árabes gravadas na pedra que terão sido gravadas durante longos períodos de vigia, após um pequeno combate como celebração de vitória, ou por vândalos que sucederam à guerra. Dali, tem-se uma boa perspectiva da região circundante e nada mais, até se descer.

Perto dali, parámos no segundo ponto de interesse: um pequeno lago que se formou na base de várias escarpas verticais em pedra. 'Boas para fazer escalada', comentou-se. Água turva, nada de invulgar se não fosse a maior massa de água permanente que tínhamos visto cá até àquela altura. Seguimos viagem depois de algumas fotografias.

O percurso que encetámos a seguir, indicado pelo Bob Marley, deu-nos a certeza de estarmos a abandondar a paisagem típica de Tamanrasset para a substituir por uma de rocha. Por entre planaltos constituídos unicamente por pedras pequenas apenas desafiadas por oueds ocasionais e escarpas rochosas de agulhas vulcânicas, avançámos algumas dezenas de quilómetros na direcção das montanhas. Tínhamos a nítida sensação de estar sempre a subir apesar da monotonia da condução. Da condução, não do traçado: na paisagem de pedra surgiram dromedários, burros, pequenos indícios do Homem como placas que designavam sítios estranhos que ninguém no mundo sabe que existem e postes com pequenos cilindros em cima que ninguém no mundo sabe para que servem. E, à frente de tudo isto, umas flores vermelhas que encontravam o sol nos espaços entre as pedras. As flores também faziam a minha imaginação trabalhar e passavam a ter características místicas como efeitos medicinais incríveis, desabrochar apenas uma vez na vida para morrer logo depois ou simplesmente serem obra de um capricho da natureza que, segundo se lê na paisagem, ainda tem muito que fazer por aqui até esta região se tornar suportável.

A visita seguinte foi em mais uma massa de água acumulada por entre a rocha: desta vez, um riacho. Um curso de água que descia das montanhas engordava naquela zona há tempos infindos, a julgar pela forma lisa e arredondada das rochas e pela presença de peixes. Peixes no Saara guardados por um tuaregue solitário cujo trabalho é ser "o guarda das montanhas", como informou o Bob Marley. Vive numa cabana com um jipe branco estacionado em frente e mostra a zona aos turistas que o abordam. Depois da visita e das fotografias, continuámos a subir pelas montanhas.

A partir do riacho com os peixes, o caminho parecia-se com tudo menos um caminho. Os pneus rolavam sobre trilhos de pedra mais enterrada que a circundante, fazendo adivinhar um trilho e temer os furos. As carrinhas seguiam devagar, à velocidade do passo de uma pessoa. As formações vulcânicas que caracterizam a zona tornavam-se cada vez mais frequentes e assumiam formas cada vez mais invulgares. À nossa volta, ao perto e ao longe, viam-se as montanhas a perder de vista, já abaixo de nós.

Os últimos dez quilómetros são terríveis: demoraram meia hora a fazer. No fim do trilho encontra-se uma espécie de aldeia constituída por uma estalagem com alguns quartos e sala de refeições, uma base militar para os guardas da zona e um pequeno armazém com geradores de electricidade e painéis solares no telhado. O Assekrem fica mais acima ainda, a umas dezenas de metros que têm de se percorrer a pé. O trilho lá para cima vence um grande declive por troços em ziguezague. Alguns turistas franceses estavam já a subir quando lá chegámos, mas - à boa moda portuguesa - ainda tivemos tempo de lanchar antes de subir: sandes, panados, sumos e cerveja trazidos de Tamanrasset.

A palavra 'assekrem' significa, na língua regional dos tuaregues, 'fim do mundo'. Pelo caminho que tem de se fazer para lá chegar, talvez seja um nome apropriado, mas a paisagem parece mais o princípio de alguma coisa que talvez uns milhões de anos mais tarde se transforme - aí sim - no mundo. No cimo do trilho existe um planalto enorme que deixa ver as montanhas até onde a vista alcança. Cada forma estranha de cada pináculo é revelada e deixa de parecer bizarra para parecer apenas bonita, inserida num todo que agora se consegue perceber visto de cima. Nesse sítio, existe uma casinha minúscula e uma capela onde viveu o padre Charles de Foucauld - Père de Foucauld -, um boémio que se converteu ao espiritualismo e veio procurar sossego e meditação nas montanhas do Hoggar. Pregou uma palavra muito própria e elaborou um dicionário da língua local dos tuaregues até ser assassinado em 1916 à porta da sua cabana devido a divergências religiosas.

Após a visita à última parte da vida deste padre, dirigimo-nos para o extremo oesto do planalto, onde o sol já se preparava para desaparecer. A luz derradeira do dia era rosada e pousava na face das montanhas explicando cada reentrância e saliência com calma. Ao pôr-se depressa atrás dos últimos píncaros do horizonte, o rosa transformou-se em laranja e espelhou-se nas nuvens. Tudo à nossa volta incluindo as pedras, as montanhas, nós e até os turistas franceses ficou alaranjado de um lado e escuro do outro, de uma maneira em que os dois tons se fundiam para retirar a identidade a cada coisa e tornar tudo numa só: a luz. As nuvens tornaram-se cada vez mais alaranjadas até que começou a escurecer. No fim, as pedras voltaram a ser pedras, os turistas voltaram a ser turistas e os portugueses falaram em regressar a Tamanrasset porque não seria fácil fazer o caminho de regresso no escuro apesar do Bob Marley. Pudera: um pôr-do-sol majestoso como este rouba toda a luz da região durante várias semanas - não percebo os painéis solares - e ninguém me convencerá do contrário.

30/09/2007

Mil novecentos e troca o passo

Quando o traçado de uma estrada se quer mais alto do que o terreno natural, é preciso construir um aterro. Para isso, vai-se buscar o material para aterro - que é o próprio solo - a sítios onde ele existe com características e quantidades adequadas, cujo nome técnico é 'zonas de empréstimo'. Apesar de terem este nome, julgo que até hoje ninguém devolveu o solo "emprestado", retirando-o da estrada e colocando-o novamente no local de origem: de qualquer forma não há problema porque também não é sujeito a juros.

Quando o Abduljabar, o técnico de laboratório argelino, foi à carrinha buscar o estudo das zonas de empréstimo ao longo do traçado, nunca pensei que se tratasse de um documento com quase trinta anos. Porém, não seria de esperar outra coisa, porque o próprio projecto da estrada tem a mesma idade. Estávamos em pleno deserto, numa zona vasta praticamente plana onde só se vêem montes castanhos ao longe separados da planície de areia por uma linha do horizonte azul, tremeluzente e aquática: miragens, da cor do céu. Como acontece vulgarmente, fazia um vento forte, que, para além de tornar complicado folhear as páginas do caderno antigo e descobrir nele a informação pretendida, fazia tremer o boné azul do Abduljabar.

O documento estava demasiado branco e bem conservado para pôr de parte a hipótese de ter sido fotocopiado em boa hora para evitar desintegração. O seu conteúdo, porém, revelava a sua antiguidade: cada zona de empréstimo era representada numa página por um esquema altamente dúbio constituído por uma linha recta (o traçado da estrada), um pequeno marco quilométrico estilizado, um desenho rudimentar das montanhas que se podiam ver naquela área e um polígono delimitador da zona de solo adequado para construir aterros, com a respectiva distância à estrada. No sítio onde estávamos, descobrir a localização exacta do polígono no terreno pareceu-nos uma tarefa quase impossível: o único ponto de referência credível era o marco. Mais impossível nos pareceu ainda quando o Abduljabar nos disse que os pontos do polígono estavam assinalados no terreno.

Lembro-me que, ao ouvir isto num francês gritado com força superior à do vento, olhei em volta para tentar perceber o que havíamos de fazer. A região pareceu-me ainda mais plana e ainda mais incaracterística. Só algumas pedras negras rasgavam a superfície arenosa e a monotonia da paisagem: assinalados como?

Ao seguirmos o técnico argelino, que tentava orientar-se pelo desenho e impedir o voo do boné e das páginas fotocopiadas (de certeza que fotocopiadas), apercebemo-nos de que ele procurava qualquer coisa nuns pequenos montes de areia e pedra, pouco visíveis à distância. Segundo ele, havia qualquer coisa ali que assinalava os pontos do polígono que tinha no esquema altamente dúbio do caderno. Fomos seguindo o Abduljabar à medida que ele se dirigia para os montinhos que detectava à distância para os sondar com uma pá.

Os montinhos não se distinguiam bem à distância devido à sua pequena dimensão. A areia e pequenas pedrinhas que os constituíam não destoavam do resto da paisagem. Alguns eram formações naturais, outros talvez feitos por alguém para criar pontos de referência, como é comum: por todo o percurso de Tamanrasset até In-Guezzam há montes de areia e pedras que assinalam o trajecto e mostram o caminho. Talvez devido a isso, eu estava céptico relativamente aos montes. Pelo menos até o Abduljabar, vencendo o vento no que diz respeito às páginas e ao boné, ter encontrado um papel sob uma pedra num destes montinhos.

Era um papel grosso, que parecia ter sido arrancado de uma embalagem de qualquer coisa à laia de improviso. Alguém tinha escrito nele a lápis, há quase trinta anos, que aquele montinho correspondia ao quarto ponto do polígono da décima quarta zona de empréstimo. Depressa pensei que aquele papel e aquela informação de grafite era, muito provavelmente, mais antiga do que eu. E tinha subsistido, perfeitamente legível, ao vento que rouba fotocópias e bonés durante todo esse tempo apenas com a ajuda de uma pedra. Surreal e mágico: resistiu mais impunemente aos anos do que eu e, certamente, do que quem o colocou ali. Como uma cápsula do tempo, só que sem cápsula.

Foi por isso que, antes de partirmos em busca dos restantes montinhos, reslovi tirar uma fotografia ao papel. Pedi a alguém para me segurar no papel e tuca. Achei curioso, interessante e bizarro e por isso tuca. Tuca porque assim, mesmo que o vento leve os bonés, as fotocópias (é tão certo que fotocópias) e os papelitos, terei a certeza de que estes tempos que passo aqui ainda estarão num sítio qualquer perto de mim (e se calhar também faço um esquema altamente dúbio para os conseguir encontrar) daqui a mais uns trinta anos.

A modorra e os soldados

O organismo do estado onde eu precisava de ir abre às nove da manhã durante o Ramadão. Cheguei dez minutos antes e, como é óbvio, tive de esperar quase até às dez para falar com o senhor que ia assinar os papéis que eu levava. Decidi esperar na rua e observar.

O facto de serem nove da manhã não costuma intimidar muito o sol, porque a essa hora já sou obrigado a usar manga curta. O calorzinho agradável que se fazia sentir e a minha modorra matinal encostaram-me à parede da esquina e fizeram-me espreguiçar. A rua ainda não estava muito movimentada, mas também raramente o está. Passavam poucos veículos, o que não significa que o trânsito é seguro: Peugeots 504 e 505 a caírem de podres, carrinhas Toyota, jipes variados, táxis (mais Peugeots), motas, bicicletas e dromedários atropelam-se numa espécie de desafio para descobrir quem conduz pior. Diria que também é da modorra, porque apesar de o tráfego ser desordenado até o sol se pôr, neste sítio é fácil ter-se modorra o dia inteiro. Enfim, só neste dia é que me apercebi do quão curioso é haver às vezes tão poucos carros na rua e mesmo assim ser perigoso andar na estrada.

Mas dizia eu que Peugeots, Toyotas e assim. E também pessoas. Algumas a irem para o trabalho, outras, mais jovens, vestidas de soldado a entrarem num quartel próximo, outras, mais jovens ainda, a irem para a escola. Passa por mim um grupo de miúdos vestidos com batas brancas, como se fossem pequenos médicos de mochila às costas. As mulheres, com a cabeça tapada. Os tuaregues também. Às vezes, as pessoas que passam mais perto de mim cumprimentam-me. "Salaam Alaykum". Nenhuma destas pessoas corre para lado nenhum: percebo a minha ingenuidade em ter vindo dez minutos mais cedo e a sorte que tenho em ser tão ingénuo assim.

O sol bate numa das paredes dos edifícios, duas no máximo, e não me deixa ter certezas acerca da sua cor: avermelhado ou acastanhado? Seja como for, é a cor dominante nas casas de Tamanrasset, creio eu que para não destoar. Troco a esquina por uma árvore grande e amodorro-me junto ao tronco pintado de branco na base, como todos os outros troncos de árvores grandes.

Em suma: os Peugeots, Toyotas, soldados e médicos pequeninos que talvez curem doenças pequeninas também, todos dourados pelo sol e acastanhados pelos edifícios. É da luz, creio, e do calor também. É uma imagem calma e tranquila, graças à cor e às pessoas: ninguém tem pressa, como se toda a gente estivesse a esperar comigo pelo senhor que assina papéis. Como se toda a gente tivesse a modorra que eu tenho, os soldados, os táxis e os dromedários. Por isso, movido pela simples cortesia e grato por me fazerem companhia enquanto espero, cumprimento também toda a gente que passa por mim.

Há imensos militares em Tamanrasset. É uma cidade muito militarizada porque serve de base para a vigilância e protecção das fronteiras com o Niger e com o Mali, e de toda região sul em geral: uma área tão vasta de areia e pedra que torna estranho - e interrogo-me acerca disso - o facto de a farda dos soldados ser em tons de verde.

29/09/2007

A aguardente

Assim de repente veio-me a vontade de escrever, eu que até estava a pensar escrever qualquer coisa amanhã, uma coisa assim gira sobre Tamanrasset, dessas que dão a conhecer um bocado desta realidade àqueles que não têm oportunidade de vir aqui ver como isto é e que a meu ver não perdem grande coisa porque isto não é nada de especial porque é um pardieiro, a não ser que venham uma semana para conhecer como o resto dos turistas europeus e isso chega porque não há muito mais para ver, paisagens e tal, mas ao fim de algum tempo cansa porque afinal de contas é o deserto e o deserto é famoso por ser grande e monótono e acaba por ser uma chatice ao fim de muito tempo.

Acho que me deu a vontade de escrever porque estava aqui na internet a falar para Portugal e para a vida que pus em pause (tuca) para vir para cá ganhar a vida e essas coisas que as pessoas crescidas fazem (agora já trabalho, sou crescido), e comecei a ouvir uma música que ouvia imenso quando trabalhava na margem sul do Tejo. Claro está que as memórias jorraram em catadupa sobre a minha cabeça pequenina e o resultado é a inundação deste texto, que não vou guardar em Word como os outros, que não irei reler, que será espontâneo, que irá destoar dos outros mas no fundo faz parte da experiência de estar déplacé aqui na Argélia e conviver vinte e quatro

A professora de língua portuguesa diz aos seus alunos:
- Num texto corrido, os números escrevem-se sempre por extenso.


horas por dia com a obra, com a cultura estranha que tanto deu a fazer a vários reis nossos, com o trabalho, com as saudades, com o calor (se vissem como estou agora), com a areia e o pó, com todas essas coisas que tornam o facto de estar no deserto numa coisa "gira".

A margem sul do Tejo é uma coisa onde eu vivia na altura em que o ministro Mário Lino decidiu dizer que a margem sul do Tejo era um deserto. Foi mais ou menos por essa altura que soube que viria para aqui, o que me rendeu comentários

- Vais sair de um deserto para ires para outro!

sem piada nenhuma. Quer dizer, na altura tinham piada mas agora deixaram de ter porque começo a ter saudades até da margem sul do Tejo.

No Lavradio, freguesia do concelho do Barreiro, existe um depósito gigante de gesso que forma um planalto com uma extensão enorme. Localmente, é conhecido como 'Montes da Lua', devido ao seu aspecto árido e inóspito. Cativa pela sua estranheza. Visitei os Montes da Lua várias vezes quando vivi por ali e pude ter uma perspectiva diferente do estuário do Tejo: vê-se o casario de Lisboa, o cristo-rei de Almada, a base aérea do Montijo, as pontes, a ilha do Rato, as fábricas do Barreiro. Das vezes que lá fui estava frio e um vento do caraças. Cativa, acreditem: é desolador, assustador, perturbador ver uma quantidade enorme de gesso mesmo à beira do nosso Tejo, mas cativa. Os U2, os Blasted Mechanism, o Cristiano Ronaldo e os actores do Filme da Treta pensam o mesmo, porque já lá fizeram sessões de fotografia-barra-filmagem.

Para mim os Montes da Lua eram o deserto da margem sul do Tejo e acho que gosto desse tipo de sítios em que uma pessoa se sente perdida e espantada. É isso: estava espantado. Gosto de coisas que ainda me espantam. Tamanrasset e o Saara espantam-me. Surpreendem-me. Já cá estou há quase dois meses e ainda há qualquer coisa que me surpreende, que estranho: acho isso fabuloso. Há qualquer coisa neste espanto que me faz ter vontade de conhecer e perceber os sítios, e é isso que me cativa. Isso acontece mais nos sítios feios e difíceis porque são esses que se têm que olhar com mais atenção para se compreender que todos os sítios têm o seu encanto. Atenção: eu disse encanto e não beleza.

Certa vez, em Lagos, estava à procura de um restaurante quando um rapaz com dois finos na mão me abordou em inglês oferecendo-me ajuda e uma das cervejas. Recusei a cerveja e aceitei a ajuda. Revelou-me a direcção para o restaurante que procurava e acompanhou-me. Chamava-se Jamie, tinha dezassete anos e era australiano. Estava a trabalhar em Lagos. Quando lhe perguntei porque razão um australiano tão novo tinha vindo para tão longe de casa, ele respondeu-me:
- Oh, but Lagos is the best, man!


Acho que serve tudo isto para dizer que tenho saudades de Portugal. Mais nada. Prometo que da próxima escrevo qualquer coisa gira sobre a Argélia, sobre Tamanrasset, sobre o deserto, qualquer coisa que contribua para dar a conhecer a vida aqui. Mas neste preciso momento - e se for necessário, apagarei este texto e negarei tudo -, só consigo escrever sobre o sítio onde estou.

22/09/2007

O gamadensímetro

Na construção de uma estrada, antes de se aplicar o vulgarmente chamado ‘alcatrão’, é costume aplicar-se uma camada de brita chamada ‘tout-venant’. Aqui, no sul da Argélia, não se aplica tout-venant mas sim ‘tuf’, um solo natural frequentemente encontrado nuns montes avermelhados no deserto. Depois de espalhado sobre a plataforma da estrada e regado, é compactado com cilindros. A compactação final, que deve obedecer a valores estipulados no projecto, é medida com um aparelho chamado gamadensímetro. Durante o funcionamento, este aparelho liberta radiações. Convém não se estar perto dele enquanto funciona, porque a presença de uma pessoa nas proximidades influencia os resultados e, segundo dizem alguns, as radiações libertadas podem provocar disfunções masculinas indesejadas. Pelo sim, pelo não, ninguém me apanha perto do gamadensímetro enquanto ele não terminar a leitura: no fundo, é um bocado como guardar o telemóvel no bolso de trás das calças.

Neste momento está a aplicar-se tuf. Periodicamente, um fiscal técnico de laboratório chamado Aissa vai até à obra para verificar com um gamadensímetro se a compactação está dentro dos valores devidos. Enquanto esperamos que o aparelho cuspa os resultados do ensaio, conversamos em francês. O tema mais frequente a seguir ao trabalho é a religião. Mais propriamente, as diferenças entre as nossas religiões. Como está a decorrer o Ramadão, este tema vem à baila mais vezes ainda.

O Aissa prepara o aparelho para o ensaio e eu aproveito a necessidade de me distanciar para ir até à carrinha buscar uma garrafa de água. Está a cinquenta metros de nós, perto do último ponto que analisámos. Caminho sobre o tuf compactado que se prolonga como uma passadeira até desaparecer em curva no cimo de um monte. Está um vento fortíssimo, que nos refresca ao mesmo tempo que nos enche de areia. De cada lado da estrada há colinas de areia e pedra a perder de vista onde pouca gente, incluindo os argelinos, se aventura. No cimo dos montes mais próximos voejam bandos de corvos que são atraídos pela água que misturamos no tuf: são silenciosos e não incomodam, mas saltam à vista por causa do contraste que fazem com a monotonia da paisagem. Chego à carrinha, pego na garrafa e regresso para junto do Aissa. Bebo um trago e ofereço-lhe água, sorrindo. Sei que ele vai recusar porque é Ramadão. Faz que não com o dedo e diz:
- Le Dieu.
Depois, pergunta-me se não faço Ramadão. Rio-me e respondo-lhe que não, dizendo que cada um de nós adora o mesmo deus de formas diferentes. O Aissa insiste na ideia de que eu devia fazer o Ramadão: segundo ele, quando morrermos, Deus irá ter em conta todas as rezas efectuadas e Ramadões cumpridos antes de nos decidir aptos para o Paraíso. Não sou religioso: talvez seja por isso que comentei que o Paraíso será ganho se agirmos em vida de acordo com certos valores, como a bondade, honestidade e honra, os três únicos valores que na altura consegui dizer em francês. O fiscal retorque que existe uma componente de veneração que não pode ser descurada. Algo que eu já sabia e que é responsável por eu não ser religioso. Não tenho paciência para missas, quanto mais passar um mês sem comer durante o dia.

O vento leva os corvos a pairar no ar sem se mexerem, levanta-me o cabelo e ameaça o boné do Aissa. Faço o Aissa notar que um deus bondoso não o obrigaria a estar ali ao calor com os lábios e os dentes cobertos de areia e pó trazidos pelo vento sem o deixar beber água, mas o homem objecta que o seu deus não o obriga a nada: os árabes só fazem o Ramadão se quiserem. A conversa estagna.

Examinamos o ecrã do gamadensímetro e encontramos um valor favorável, que o Aissa escreve numa folha de papel dobrada em oito. Pegamos no aparelho e avançamos mais cinquenta metros, indiferentes ao vento cada vez mais forte que já obrigou os corvos a pousar.

20/09/2007

As feras

A esta luz, reconheço que o sinal de perigo português análogo a estes não deixa de ser um bocadinho ridículo, embora ache que a ovelha seja um bocado exagerada. Até porque ainda não vi nenhuma.

19/09/2007

Os olhos

Li uma vez num livro qualquer a seguinte frase: “as mulheres europeias, que usam argolas nas orelhas, acham que as mulheres africanas, que usam argolas no nariz, são bárbaras”.

As mulheres que se vêem em Tamanrasset, na sua grande maioria, envergam uma espécie de lenço chamado khimar que lhes cobre a cabeça e, em alguns casos, também a cara. Há uns dias atrás, cruzei-me na rua com uma mulher que tinha a cabeça completamente tapada, deixando apenas uma pequena abertura na zona dos olhos para conseguir ver. Olhámos um para o outro com estranheza: ela, presumo que tenha sido por causa do boné e dos grandes óculos escuros que eu trazia e me cobriam grande parte da cara também.

17/09/2007

Aboukh e as coisas importantes

Cheguei ao refeitório para jantar. O ajudante de cozinha, que mais tarde vim a saber chamar-se Aboukh, indicou-me os vários pratos que tínhamos à disposição nesse dia, dizendo os nomes dos alimentos em português e acompanhando-os com o dedo:
- Frango, peixe, batatas, arroz, merda.
Nessa altura, através deste rapaz árabe, comecei a aperceber-me de que, por mais que as nossas culturas tenham diferenças, estas serão sempre superadas pelas semelhanças humanas que partilhamos: quanto mais não seja, a piada em aprender palavrões noutras línguas.

Sexta-feira – de um modo geral porque nem sempre – é o dia de descanso, o que significa que a noite de quinta-feira é mais comprida que as outras. O jantar prolonga-se ao ritmo da conversa, a conversa prolonga-se ao ritmo da cerveja e a atmosfera é indubitavelmente mais leve. Às vezes, há enchidos ou bacalhau, duas coisas que não existem em Tamanrasset e mesmo em Argel não se encontram em qualquer lado. A presença desse tipo de víveres aqui deve-se a alguns portugueses que, quando regressam das férias em Portugal, trazem a mala cheia deles. Depois, os patrícios juntam-se à volta de uma mesa e come-se do que houver. Numa dessas vezes – aquela em que, desde que cá estou, se juntou mais gente à volta da mesa – o Aboukh estava a trabalhar na cozinha. Servindo-nos as cervejas, imitou os trejeitos de alguns portugueses numa mímica desajeitada acompanhada de palavrões em português. Fez rir toda a gente.

O Aboukh é muito apreciado pelos portugueses devido ao seu bom humor constante. Não é preciso falar em francês com ele: percebe praticamente tudo o que se lhe diz em português, incluindo palavrões e insultos. E quando o insultamos em árabe, ele insulta-nos em português: é simples. Por vezes, quando o tentamos convencer a comer enchidos de porco e a beber álcool, ele sorri, aponta o dedo para o céu e chama-nos nomes. Sem o saber, tem uma forma elegante de nos fazer prestar atenção aos valores dos árabes.

Podia dizer que gosto do Aboukh por ter simpatia e bom humor, mas estaria a mentir. A verdade é que gosto do Aboukh por ter uma família de treze pessoas que vive do seu ordenado e, agora sim, simpatia e bom humor.

Dizia eu há bocado que, por mais que as nossas culturas tenham diferenças, estas serão sempre superadas pelas semelhanças humanas que partilhamos. Toda a gente sabe isto, e toda a gente esquece. Mas graças ao Aboukh, não só compreendi para sempre que há, de facto, valores universais, como também já sei dizer ‘merda’ em árabe. É ‘khra’.

13/09/2007

y=x^2

Portugal entra-nos por aqui. Notícias. Futebol. Maddie. Séries. Novelas. Filmes.

Há quem tenha deixado de ver televisão porque não aguenta as saudades que isso provoca. Ao assistir ao telejornal no fim da minha primeira semana cá, apercebi-me exactamente dessa sensação: um nó na garganta que desafia as leis da física e nos bate levemente no ombro dizendo "agora só daqui a muito tempo".

Um nó pequeno: afinal de contas, somos todos homenzinhos.

12/09/2007

O Deus

Não raras vezes, assisto a árabes a rezar. Largam o que estão a fazer, ajoelham-se no chão, alguns estendem um tapete pequeno antes dos joelhos e prestam adoração a Deus. Fazem-no em qualquer lado: na mesquita, em casa, no deserto, na rua, no trabalho. O sol indica-lhes Meca: a Arábia Saudita fica para leste, por isso de manhã rezam virados para o sol e à tarde de costas para ele. Em Tamanrasset, tal como em todo o país, ouvem-se os cânticos a sair dos megafones que há nas torres das mesquitas. As palavras – ininteligíveis para mim – são lentas, arrastadas e melancólicas, e espalham-se num eco por todas as ruas, misturando-se com o ar e com o calor, entranhando-se na cidade.

Amanhã, dia 13 de Setembro, começa o Ramadão. Segundo exigem os princípios islâmicos, o fiel deverá passar trinta dias sem comer nem beber desde a alvorada até ao pôr-do-sol. Também deverá abandonar o álcool, o tabaco, o sexo e as pastilhas elásticas. Todo este jejum é seguido religiosamente – literalmente! – pela maioria dos árabes, e como estamos no país deles temos que nos adaptar. O refeitório irá estar aberto de madrugada e, à porta, foi afixada a informação das horas exactas da alvorada e do ocaso.

Segundo diz quem já viu, os árabes passam mal os primeiros dias do Ramadão. Trocam os horários ao organismo e sofrem com a fome, até se habituarem ao novo regime de jejum ao fim de uns quatro ou cinco dias. Não podem sucumbir: se desrespeitarem um dia do Ramadão, têm que jejuar durante sessenta dias em vez de trinta. Se desrespeitarem esses sessenta dias, sujeitam-se a cento e vinte, e assim por diante até ao ‘mais infinito’. Os doentes, as grávidas e os viajantes estão dispensados de fazer o Ramadão.

Como todas as questões religiosas, a decisão de fazer ou não o Ramadão é pessoal e depende da fé. Há árabes que não seguem a religião islâmica, à semelhança do que acontece com muitos católicos em Portugal. No norte da Argélia, região mais ocidentalizada, a taxa de praticantes é menor do que no sul. Os jovens também têm tendência a ser mais liberais neste aspecto. Porém, todos os argelinos a quem pergunto se vão fazer o Ramadão – e pergunto a bastantes – respondem que sim. De uma forma geral, os árabes levam a religião mais a sério que nós. Mas até um colega nosso, o Ezequiel, português de gema que se converteu ao islamismo há algum tempo, vai fazer o Ramadão.

Hoje ao jantar, o Nuno, colega nosso, conta que perguntou ao rapaz argelino que começou agora a trabalhar connosco se ia fazer o Ramadão. Ele respondeu que sim: “bebendo whisky com fartura”.

11/09/2007

J'ai oublié all my life

O topógrafo da fiscalização, natural de Ghardaïa, trabalhou em Hassi Messaoud durante muito tempo e por isso prefere falar inglês com os estrangeiros. Eu respondo-lhe sempre em francês porque me faz uma confusão enorme ouvi-lo em inglês, aos colegas dele em francês e aos meus colegas em português: o resultado disto tudo é eu dar comigo a dizer, como aconteceu hoje, coisas do tipo “ça va, my friend”, “beaucoup money” e “j’ai something for you”.

Hassi Messaoud - O bom, os maus e o Tinoni

A centenas de quilómetros a norte daqui existe uma pequena cidade chamada Hassi Messaoud, da qual se ouve falar muito. É uma cidade pequena mas muito famosa na Argélia devido à grande extracção de petróleo e gás natural que se faz na sua zona. Há uma grande concentração de empresas europeias e americanas com actividades relacionadas com estes recursos naturais, o que torna Hassi Messaoud uma cidade rica e badalada. São muitos os europeus e os americanos, a cidade é desenvolvida, os aviões saem a horas, os contratos de emprego são aliciantes, a língua forte é o inglês e não o francês, as transacções são milionárias. Contudo, segundo a opinião geral dos argelinos com quem falo, os nativos de Hassi Messaoud são os argelinos com pior feitio. Não sei porquê, mas pelo que já pude ver estou inclinado a concordar. São desconfiados, arrogantes, vigaristas, preguiçosos, mal-humorados, prepotentes, enfim: uma vasta gama de defeitos. Estará essa atitude relacionada com o rebuliço à volta dos recursos naturais da sua terra? Consequência de incompatibilidades culturais? Problemas que surgiram com os estrangeiros? Competição na corrida ao ouro negro? Ou apenas um problema de maus fígados?

Fígados ou não, o facto é que grande parte do gás natural consumido em Portugal vem da Argélia. Por isso, da próxima vez que acenderem um bico de fogão lembrem-se de mim. A não ser que não tenham gás canalizado. Nesse caso, lembrem-se do conselho do Tinoni de não deitar a bilha para aproveitar o restinho de gás que ficou lá no fundo, porque é perigoso: eu estou a avisar.

06/09/2007

Crise de identidade

O engenheiro argelino que vai realizar a intervenção nas oueds intersectadas pela estrada, já meu conhecido, age como se lhe agradasse ver um miúdo novo a trabalhar com ele. Sempre que me vê é extremamente simpático e cordial. Um dia, perguntou-me a sorrir:
- Do you understand english?
Respondi-lhe que sim, e ele atirou, pondo as mãos nos meus ombros e rindo:
- You look like an american star!


O meu nome próprio é extremamente simples porque só tem três letras, mas isso não impede os argelinos a quem me apresento ou sou apresentado de terem alguma dificuldade em pronunciá-lo. Alguns deles perguntam-me, para confirmar se compreenderam o nome:
- Rui? Comme Rui Costa, le footballeur?
E quando lhes respondo que sim, nunca mais se atrapalham com o meu nome.

Notícia de rodapé de noticiário em Portugal no dia 6 de Setembro de 2007

Nenhum português dos que aqui estão – incluindo eu – gosta de andar com a escolta policial atrás. Chegam atrasados, atrasam-nos e, muitas vezes, estorvam-nos. Alguns são extremamente antipáticos. Correm boatos, oriundos da própria polícia, de que no estaleiro de In-Guezzam a segurança terá de ser levada muito a sério, por estarmos em pleno deserto quando nos mudarmos para lá.

Atentado em Batna, no norte do país, a cerca de 1400km de Tamanrasset. Um suicida fez-se explodir no meio de uma multidão que aguardava a chegada do presidente Abdelaziz Bouteflika. Cerca de uma dezena de mortos e mais de trinta feridos.

05/09/2007

O deserto, afinal

No cimo do monte, olho em volta para ver um pouco mais da paisagem. É arrebatadora. Repete-se até ao horizonte, onde não dá sinais de terminar. Daqui, percebe-se a facilidade com que nos poderíamos perder se não existisse a estrada, mesmo no estado em que está. Sinto-me nervoso por estar longe da carrinha e desço dali.

‘Está calor aí?’ Ouço a pergunta imensas vezes, e respondo-a outro tanto. Está calor sim. Apesar de chover bastante aqui nos meses de Julho e Agosto, a época chuvosa do Hoggar, está sempre calor. Contudo, Tamanrasset é relativamente amena: se nos afastarmos da cidade em qualquer direcção, começamos a descer das montanhas e sentimos um calor mais forte. A norte em In-Salah, a sul em In-Guezzam, a oeste em Bordj Badji Mokhtar e a leste em Djanet, a pluviosidade desaparece e as temperaturas atingem valores inacreditáveis, aproximando o Saara da ideia que temos dele. As maiores semelhanças entre este sítio e a forma como imaginamos o deserto são, na minha opinião, os tuaregues e as temperaturas altas. A paisagem da zona não é constituída por uma infinidade de dunas amarelas ou cor-de-laranja, nem o oásis de Tamanrasset é um aglomerado de palmeiras em redor de uma nascente de água. As dunas infinitas existem nos ‘ergs’, ou mares de areia, que são apenas uma parcela do Saara, e muitos oásis só têm água à superfície quando chove. Até os camelos são uma farsa: ainda não vi um único desde que cá cheguei. O que há são dromedários. Para além deles, encontram-se imensos animais: cabras, burros, pássaros, lagartos, cobras, escorpiões e gazelas pequenas. Quase todos são da cor da areia, excepto as cabras, os burros e uns escorpiões pretos enormes. Desses, só vi fotografias, e chega.

O sol é terrivelmente forte: todos os colegas que cá estão tiveram um período de habituação, tal como eu, que estava de rastos ao fim dos dois primeiros dias que passei ao sol. Já houve um português que teve de ser hospitalizado por exposição excessiva ao astro-rei. Contudo, ao fim de algum tempo ficamos habituados e passamos a só precisar de água. Muita água.

A paisagem é constituída principalmente por uma terra arenosa que em alguns locais – e aí sim – é completamente substituída por areia. Há montes dessa areia encimados por pedras pretas, castanhas, vermelhas, brancas ou azuis. Ou, simplesmente, montes de pedra. Nem sempre se vê o horizonte com nitidez, sobretudo nas zonas mais para sul de Tamanrasset, onde tudo se transforma numa planície que continua para sempre. A paisagem inóspita causa um primeiro impacto igual ao do sol: bate-nos com força e recorda-nos de que não estamos em casa mas sim num planeta estranho. Mas depois vamo-nos dando cada vez melhor.

A poeira no ar é a única coisa que me incomoda aqui. Enquanto escrevo isto ouço uma grande ventania lá fora que levanta poeira: sinto-a logo no nariz, custa-me a respirar e entrego-me à mercê dos pêlos das minhas narinas.

26/08/2007

Doucement

Ao meu lado na carrinha seguia o Belaissa, velhote bonacheirão que nesse dia acabou de trabalhar mais cedo devido a uma avaria na sua máquina e decidiu acompanhar-me nas minhas andanças pela obra. A certa altura, pergunta-me a quantos metros de profundidade vai o furo. Respondo-lhe que vinte e cinco. Faz um ar espantado, como qualquer vedor que se preze, e não fala mais no assunto.

Durante alguns dias levei comigo três operadores de máquinas argelinos na viagem para a obra: Belaissa, operador de giratória, Hamza, operador de motoniveladora, e Bouguessa, operador de bulldozer. Nos primeiros dias íamos calados, talvez por causa do sono normal àquela hora da madrugada, talvez por causa do nosso desconhecimento quase geral da língua francesa, talvez por eu lhes ser ainda estranho na altura. O facto é que, a pouco e pouco, fomos começando a conversar.

Não é tarefa fácil conversar com eles. O Belaissa e o Hamza só falam árabe, praticamente. Era o Bouguessa quem traduzia para francês o que eles diziam num árabe polvilhado de francesismos. Como os meus conhecimentos da língua francesa também deixam muito a desejar, recorria a pequenas expressões francesas que todos os argelinos conhecem: ‘pas de problème’, ‘doucement’ e ‘comme ça’, para citar as mais simples. Utilizava expressões novas que o Bouguessa dizia, que já sabia que as compreenderiam quando eu as usasse, e lá nos fomos entendendo. Fui aprendendo algumas palavras simples em árabe por cortesia do Belaissa, que fez trave-mestra em me ensinar qualquer coisa da sua língua. Sempre que eu lhe dizia que não conseguia decorar todas as expressões que ele me ensinava, ele sorria e dizia:

- Doucement, doucement – que, em árabe, é algo como ‘bechuia, bechuia’.

E passávamos assim as viagens de ida e volta. Fomos começando a conhecer-nos e agora damo-nos bem. Apesar de já não ser eu a levá-los e de passar menos tempo com eles, cumprimentam-me efusivamente quando me vêem. O Belaissa já me dá dois beijos: os homens árabes cumprimentam-se com dois ou quatro beijos, consoante o grau de intimidade. Rio-me bastante com o Bouguessa que, como dizem alguns portugueses, combina na perfeição com a máquina que conduz, por ser grande e desengonçado.

Um dia convidaram-me para ir ao dormitório deles, onde me mostraram vídeos musicais de um miúdo cantor, que tinha quinze anos de idade e um boné da Puma na cabeça. Pelo que constatei, esse miúdo é um artista relativamente conhecido no Magrebe: o primeiro vídeo que vi foi filmado num salão qualquer em Marrocos. Nele, o jovem músico cantava em dueto com uma rapariga da sua idade e ia-se abraçando a todos os músicos excepto ao baixista. Senti a diferença cultural entre nós acentuar-se quando me apercebi de que não conseguia gostar das músicas do rapaz – que tinham todas o mesmo efeito de alteração da voz da canção ‘Believe’ da Cher – e de que não me conseguia abstrair da fraca qualidade dos vídeos, em que algumas cenas se repetiam várias vezes ao longo da peça. E, naquele momento, senti-me incapaz de apreciar este aspecto de uma cultura diferente: seria apenas uma questão de gosto pessoal ou uma barreira interpretativa criada pela sociedade ocidental de onde venho? Vá-se lá saber. No entanto, vejo os meus colegas portugueses tão integrados aqui, vivendo como se sempre tivessem pertencido a Tamanrasset, que concluo que é uma questão de tempo até me habituar também. Primeiro, porque em Portugal também há bonés da Puma. E depois, porque – e já que esta obra é de uma estrada – “o tempo é o melhor cilindro”, palavras do nosso técnico de laboratório. Ou como diz o Belaissa:

- Doucement, doucement.

25/08/2007

O empate

A certa altura, durante um Benfica – Vitória de Guimarães que não despertava grande interesse a nenhum de nós, o António entra na sala de convívio com duas garrafas de água na mão. Tinha acabado de chegar do estaleiro de In-Guezzam e informa-nos de que os guardas tuaregues que lá trabalham tinham capturado duas cobras venenosas. Mataram uma delas mas a outra ainda continuava viva: cada qual em sua garrafa. Como o jogo não atava nem desatava, transferimos a nossa atenção para a garrafa com a cobra viva.

Alguém tinha feito vários furos na tampa para o animal poder respirar. A cobra encolhia-se no fundo da garrafa e de vez em quando esticava-se para cima e abria a boca em protesto. Digo eu que em protesto: podia ser fúria, medo, ou até sede de vingança, como tinham dito os guardas tuaregues. A fazer fé no que eles disseram, aquele que capturar uma destas serpentes deve matá-la de imediato. Caso contrário, ela persegue o captor e não descansa enquanto não lhe der uma dentada. Disseram também que ela consegue saltar a uma altura de cinco metros quando ataca. Todos estes factos, impossíveis de confirmar por nós portugueses, fizeram toda a gente esquecer o Benfica – Guimarães que, ainda por cima, avançava pela segunda parte com um empate a zero.

A cobra continuava a subir e descer a cabeça, abrindo a boca e mostrando uns pequenos dentes retrácteis que não auguravam nada de bom. Era amarela, da cor da areia, com manchas acastanhadas. Passaria completamente despercebida por qualquer um de nós, e toda a gente comentava isso. O seu veneno – pelos vistos fatal – não era ameaça agora, já que estava separada do resto do mundo por uma garrafa de plástico. Daí a irritação da cobra: estar-se preso numa garrafa de plástico, sentir-se reduzido a uma atracção circense e assistir a um empate do Benfica é frustrante e abala qualquer um.

Talvez seja por isso que, quando encheram a garrafa de álcool, ela aceitou bem o destino que se afigurava inevitável desde o momento da captura, e desceu a cabeça pela última vez.

Desde a captura da cobra e da do dia seguinte, em que trouxeram para o estaleiro de Tamanrasset dois escorpiões mortos, algumas pessoas, incluindo eu, avisamo-nos mutuamente quando estamos no deserto para termos cuidado com as cobras. Meio a brincar, meio a sério. Talvez seja mesmo caso para se ter cuidado: é que, como é evidente, nem todas as cobras aceitam de forma tão pacífica um empate a zero do Benfica.

15/08/2007

Le taxi jaune

Mandei parar o António, que passava a meio da manhã pela frente de obra a caminho do estaleiro de In-Guezzam. Eu ainda não o tinha visitado, pelo que lhe pedi para me mostrar o caminho: consta que para lá chegar é preciso estar atento aos poucos pontos de referência que existem e não convém mesmo nada tentar lá chegar sozinho pela primeira vez, sem se conhecer o percurso, sob risco de se acabar perdido. O António concordou e eu fui atrás dele na minha carrinha, seguidos pelos dois jipes da gendarmerie que o estado argelino fornece como escolta. Segui-lo não foi tarefa fácil porque ele anda muito depressa e, com a grande quantidade de pó que os carros levantam, é preciso manter uma distância considerável ao veículo da frente para se conseguir ver alguma coisa. Mas bem ou mal lá o fui seguindo. Passámos o ponto mais a sul que eu conhecia até à altura, o sítio onde está o esqueleto de um carro amarelo que, por ser um objecto invulgar e saltar à vista, se tornou uma referência para quem passa por aqui: tuaregues, argelinos, contrabandistas e portugueses chamam-lhe ‘le taxi jaune’.

Verifiquei que, com efeito, o percurso desde o início do nosso troço da estrada até ao estaleiro de In-Guezzam é complicado para quem não o conhece. É uma planície de areia a perder de vista, e mesmo os montes de pedra que são frequentes mais a norte surgem apenas de raro em raro no horizonte e mesmo assim só se vêem se o dia estiver limpo de poeira. Naquele dia, não era o caso: O horizonte estava completamente oculto pela areia em suspensão no ar, e a única coisa que se via era o chão, que se transformava gradualmente num céu acastanhado uma centena de metros à nossa frente. As únicas referências do caminho são uns arbustos e umas árvores (poucas) que mostram o percurso para sul: existe esta vegetação devido a uma oued que a vai regando esporadicamente.

Ao fim de alguns quilómetros, talvez trinta, vêem-se “as mamas”, duas montanhas que servem de confirmação de que se está no caminho certo. Poucos quilómetros depois desses montes fica o estaleiro novo, de onde vai ser dado apoio directo à obra, por a estrada passar lá ao lado. As condições ali são piores do que no estaleiro de Tamanrasset por culpa do clima. Faz muito mais calor – os colegas que o estão a construir já registaram 52 graus – e há imensas tempestades de areia devido ao vento fortíssimo.

Ao sair da carrinha comprovei na pele aquilo que se adivinhava através dos vidros: calor e pó imensos. Não se via o sol, e grande parte da sua luz não atravessava a nuvem de areia que cobria tudo. O calor, esse, fazia-se sentir: não se estava bem em lado nenhum, só dentro da carrinha com o ar condicionado ligado.

Depois de fazermos o que ali fomos fazer, incluindo almoçar no refeitório, o António levou-me até à pedreira que vai extrair pedra e fabricar as misturas betuminosas a aplicar na estrada. Fica perto, a cerca de 3km do novo estaleiro. Com o tempo fechado como estava, não se via a mancha clara das rochas, mas ao chegarmos perto consegui ver as línguas de pedra branca azulada a rasgar a superfície da areia que nesta zona está coberta de pequenos seixos. No cimo dos montes, pedras negras. Na planície, pedras brancas. Uma paisagem invulgar: bucólica, vá. A pedreira ainda estava em construção. Máquinas, contentores e peças enormes, tudo espalhado pelo solo, por entre as rochas, sob um céu daqueles, é uma imagem de desolação que a princípio nos cativa e depois nos desencanta. A pedra branca será extraída e utilizada como agregado nas misturas betuminosas.

Aqui, instruímos dois argelinos condutores de pesados para levarem os respectivos camiões, já carregados da pedra branca azulada, a uma outra pedreira que existe mais a norte. O objectivo era transformar esta pedra em brita para se ensaiarem as características do material e, como a nossa pedreira ainda está em fase de construção, iríamos britar a pedra nessa outra pedreira argelina. O problema é que as pessoas que já lá tinham estado não se lembravam muito bem de onde ficava. O Carlos, colega topógrafo que encontrámos na nossa pedreira a fazer um trabalho qualquer, já lá estivera duas vezes e recordava-se vagamente do local exacto. ‘Vagamente’, no deserto, não chega: não há grandes pontos de referência para nos guiarmos, e é fácil perdermo-nos. No entanto, como qualquer topógrafo que se preze, o Carlos estava munido de um aparelho GPS, o que nos permitia aventurarmo-nos sem risco de nos perdermos.

Ele sabia que o caminho para a pedreira argelina começava no táxi amarelo. Seguimos então a estrada para norte até o encontrarmos, e depois virámos para oeste. Conduzimos nessa direcção uma vintena de quilómetros, com o Carlos a liderar o grupo. Era uma caravana engraçada: três carrinhas Toyota, dois camiões e dois jipes da polícia. Ao fim dessa vintena, o Carlos parou e informou-nos de que a pedreira não era por ali. Marcou o sítio onde estávamos no GPS, disse aos camiões e aos jipes para esperarem ali e partiu comigo e com o António. Graças ao GPS, pudemos andar às voltas à procura da pedreira sem corrermos riscos. Ao fim de algum tempo atrás das línguas de pedra branca azulada que nos iam aparecendo, encontrámos a pedreira. Ficava a poucos quilómetros do sítio onde tínhamos parado. O Carlos marcou a localização da pedreira no GPS e partimos para ir buscar o resto da caravana.

Quando regressámos à pedreira fomos recebidos, ao entrar, por vários homens surpreendentemente alegres apesar da sua condição de isolamento. Bom, talvez não seja tão surpreendente assim: sei lá há quanto tempo estão eles ali, sem ver caras novas. Um dos homens ria-se por tudo e por nada e apertava-nos a mão sempre que sorríamos. Aceitou britar a nossa pedra para levarmos seis sacos dela: bom negócio, uma vez que recebeu um carregamento de pedra à borla e só nos deu seis sacos. Agora que penso nisso, talvez isso também explique em parte o seu bom humor.

Depois das despedidas efusivas dos argelinos da pedreira, saímos de lá com a brita. Fizemos o caminho de regresso ao táxi amarelo e seguimos para Tamanrasset. Anoiteceu entretanto, e já era completamente escuro quando chegámos ao estaleiro, ainda suados e cobertos do pó branco da britagem.

Em dias assim o jantar sabe bem.

História de cem dinares

Ricardo, o condutor de pesados, conta uma história a uma mesa rodeada de convivas e povoada por garrafas de cerveja. Há uns tempos, perdeu-se no deserto ao volante do camião. Andou horas e horas às voltas sem encontrar o caminho de regresso, até que anoiteceu. Ao fim de algum tempo um carro passou por ele, e o Ricardo fez-lhe sinal para parar e pediu ajuda. O condutor e os passageiros conduziram-no de volta à estrada: levando-lhe todo o dinheiro, comida e água. Bebe um trago da sua cerveja como ponto final na sua história.

A aragem quente entra pela abertura da tenda onde estamos abrigados do sol. Boudellaa, o dono da empresa que está a fazer o primeiro furo, convidou-me a entrar para me mostrar uma notícia que imprimiu da internet, onde se fala da construção da Transsaharienne e dos benefícios que se espera verificarem-se no comércio entre os países servidos por ela. Falou-me da economia, da grande riqueza de recursos, do potencial turístico do seu país e claro, do incontornável tema da política, que o fez recitar alguns nomes de presidentes passados. Depois, falou no contrabando. Segundo ele, esta rota que vai ser transformada numa estrada é também uma artéria do contrabando entre a Argélia e o Niger.

Do Niger vem tabaco para a Argélia. Da Argélia vai leite para o Niger. O Boudellaa fala dos rapazes que escolhem fazer este percurso de noite numa iniciativa paralela de import-export. Estranho o contrabando de tabaco, mas não o de leite: o Niger é dos países mais pobres do mundo, é praticamente constituído apenas por deserto, não tem acesso ao mar e é acusado de manter um regime esclavagista mal explicado à comunidade internacional. Por isso não me espanta o leite mas sim o tabaco. Talvez venha de outro país mais a sul. Isto se o Boudellaa tiver razão.

A seguir, conta-me que a noite passada esta tenda ia sendo abalroada por um camião que não a viu, por seguir com as luzes apagadas. Para a polícia não o ver, diz o Boudellaa, ao sair da tenda para o sol. Põe-se a observar o lento progresso do furo.

Há cerveja no refeitório, mas se a quisermos beber fora de uma refeição, temos de a pagar. Há quem concorde com este sistema por considerar a cerveja um luxo, mas eu penso de maneira diferente: a cerveja é um bem essencial.

14/08/2007

O técnico informático

Por ficar a uma grande altitude, Tamanrasset apresenta um clima mais ameno do que aquele que se espera encontrar num deserto. Apesar de as temperaturas serem altas no verão, as noites de inverno são bastante frias. Agora, em Agosto, é altura de chover bastante nas Montanhas Hoggar.

No escritório, ao fim da tarde, o atarefado Bruno pede-me para ver se o nosso chauffeur de serviço está no estaleiro: é preciso levar a casa um técnico informático de Tamanrasset que veio instalar um novo computador no gabinete da administração. Vou averiguar, respondo-lhe que o chauffeur saiu há 15 minutos. O Bruno está atrapalhado num telefonema interminável, pelo que me ofereço para levar o informático a casa.

Saímos do escritório para um crespúsculo nublado. Agosto é altura de chuva nesta região e já choveu hoje. Espero que não chova novamente: complica o trabalho, enche as oueds de areia, deixa tudo sujo tal é o pó. Entramos na carrinha e começamos a conversar sobre as diferenças culturais que vemos um no outro, tema de conversa recorrente entre todos os argelinos e portugueses. Acabamos inevitavelmente por falar da língua. A língua oficial da Argélia é o árabe, mas o francês é amplamente utilizado: ele confirma-mo, embora diga que o inglês começa a ser cada vez mais instituído aos mais novos. Comenta que deve ser difícil para nós habituarmo-nos à língua, ao que eu lhe respondo que, apesar de muitos portugueses que aqui estão terem vindo cá sem falar uma palavra de francês, conseguiram desenrascar-se devido à necessidade, que é a mãe da invenção. Discuto com ele os significados de algumas palavras, e vamos assim conversando, agora apenas sobre línguas, enquanto ele intercala as suas observações culturais com as direcções da sua casa, que fica nos arredores da cidade. Viro à esquerda na primeira rotunda e sigo sempre em frente.

O técnico informático é um rapaz novo, aloirado, que creio ser do norte do país e pouco mais velho do que eu. Não tem vestes de tuaregue nem fala um francês difícil de entender, duas características da maioria dos habitantes de Tamanrasset. É afável e humilde, fala pausadamente para que eu o entenda e sorri: é simpático.

Tamanrasset não é assim tão grande, mas temos de andar um bom bocado para chegar ao destino. Apanhamos a hora mágica de todas as cidades, aquela em que os candeeiros da rua se acendem e iluminam algo que ainda não é noite mas também já não é dia. Ainda por cima hoje o céu está carregado: espero que não chova outra vez, tudo fica mais escuro, excepto o céu que assume um branco sujo. Passamos por uma rua repleta de lojas - fruta, roupa, souvenirs, telemóveis, peças de automóveis -, que começam a iluminar-se por dentro também, que depois de um bocado passa a estar ladeada por dois muros que não deixam ver para o outro lado: o muro da direita tem pinturas de livros, microfones, calculadoras e outras coisas mais que me levam a perguntar ao informático se aquilo é uma escola. Responde-me que é um instituto de formação, e que por trás do muro da esquerda está um liceu. Ainda me surpreendo quando vejo infra-estruturas assim numa cidade como esta. Viro novamente à esquerda sob instrução do rapaz.

A cidade termina abruptamente e continuamos sempre em frente numa estrada que rasga a paisagem de pedra durante umas centenas de metros, acompanhada por postes de electricidade. Ao fundo, do lado direito, antes do horizonte do céu carregado (espero que não chova mais hoje), vê-se um bairro pequeno, erguido no meio de coisa nenhuma, ocupado por casas construídas num tijolo castanho que combina com os tons terrosos da paisagem. As casas não têm revestimento e o seu aspecto é inacabado: vê-se o tijolo, vêem-se os pilares, vêem-se os varões de aço verticais no topo das casas, como se estivessem à espera de um segundo piso que nunca virá. Apesar dos postes de electricidade, os candeeiros deste bairro não estão iluminados. O pouco dia que ainda resta permite-me ver as ruas cobertas de lixo e o aspecto já gasto – destruídos pelo tempo e pelo clima - de lares que nunca chegaram a ser novos.

O informático diz-me para cortar à direita, numa pequena estrada de terra batida que continua umas duas centenas de metros até chegar ao bairro isolado. Avançando um pouco pelas ruas poeirentas percebo a pouca solidez das casas, a escuridão deste sítio à noite, o pó que nesta zona se levanta do chão para sempre quando é tocado, a grande quantidade de lixo pelo chão. O rapaz informa-me de que chegámos ao seu quarteirão e diz-me que posso parar. Despedimo-nos, ele agradece sorrindo, eu chamo-lhe mon ami a sorrir também. Dou a volta e sigo o percurso inverso, não sem antes olhar para ele a desaparecer por uma rua qualquer. Vejo as luzes de Tamanrasset à frente e comparo-as com a imagem escurecida do retrovisor que desaparece à primeira curva.

E eu espero ardentemente que não chova mais hoje.

Direcção: sul

Acordo às cinco menos um quarto da manhã para estar cedo na frente de trabalho, horário fresco estipulado para Agosto. Bebo o resto de água de uma garrafa de plástico, que atiro para um canto qualquer para junto de outras garrafas vazias. Levanto-me, lavo-me, visto-me e saio para a rua. Ainda é noite cerrada, mas já está calor. Encontro o Vasco e alguns trabalhadores argelinos à porta da cantina, que está a abrir quando eu chego. Tomo o pequeno-almoço e pego em duas sandes e três garrafas de água para levar. Entramos nas carrinhas, saímos do estaleiro e seguimos para sul.

Atravessamos Tamanrasset, que a esta hora está deserta. A actividade diurna começará mais tarde. As ruas são nossas, não me confundo nas rotundas, não me desvio de Peugeots indomados, não abrando nas barreiras da polícia que estão montadas mas não têm agentes a controlar o tráfego. Chegamos à periferia da cidade, que é constituída por uma avenida comprida com candeeiros no separador central e ladeada por coisa nenhuma, apenas deserto. Depressa deixamos para trás o que resta da cidade: a avenida comprida dá lugar à Transsaharienne, que continua para sul, para onde vamos. O Vasco segue com os argelinos à minha frente, é fácil de o ver na noite escura devido à luz vermelha do farol traseiro. À medida que a estrada serpenteia por entre os montes, os seus faróis da frente iluminam as rochas que ladeiam a estrada. Assim seguimos umas dezenas de quilómetros por estrada com pavimento em bom estado. Ligo o ar condicionado da carrinha: são cinco e meia da manhã e já está imenso calor.

Ao fim de algum tempo, vejo à minha esquerda um clarão muito tímido no céu: é o sol que aparecerá daqui a algum tempo. O pavimento bom acaba onde estão as máquinas de uma empresa argelina que tratará de reabilitar este primeiro troço. Agora estão paradas, mas daqui a algumas horas começaram a trabalhar ao seu ritmo vagaroso. Desviamo-nos da estrada por uma pista que segue a leste do traçado principal. Como todas as pistas, é constituída apenas por rodados de veículos no solo, embora devido à proximidade de Tamanrasset esta pista esteja bem definida e seja fácil segui-la. As carrinhas levantam pó que demora muito a pousar, e seguem em frente por entre árvores raquíticas, arbustos e pedras. Mais à frente, regressamos à estrada principal. O clarão a leste foi-se tornando um pouco mais evidente, permitindo ver já algumas nuvens pequenas e escuras, ainda cheias de noite.

O pavimento da Transsaharienne nesta zona é velho e esburacado: vão-se conhecendo e evitando os buracos. As rochas que ladeavam a estrada e eram iluminadas pelos faróis do Vasco ainda há pouco começam a ser cada vez mais escassas, deixando adivinhar a planície mais à frente. Depois de mais umas dezenas de quilómetros, quando o pavimento acaba de vez e dá lugar à terra batida, já os faróis não iluminam quase nada devido à claridade que vem da esquerda. As nuvens que o céu da noite escondia deixam de ser segredo: são poucas, e as da esquerda assumem tons amarelados por baixo e acinzentados por cima, devido ao sol que já lhes bate por baixo. Um pouco acima do horizonte, existe uma zona no céu que, devido à areia no ar, fica mais clara que tudo o resto e consegue dizer-se com exactidão que é ali debaixo que o sol vai nascer. Abro um pouco a janela e sinto o calor cada vez maior. Fecho-a novamente por causa do pó que as carrinhas levantam.

Continuamos em frente, já de faróis desligados. A estrada de terra batida começa a ser descontínua, havendo pequenos troços onde já não existe nada. A Transsaharienne confunde-se com as várias pistas que ali seguem para sul, num vale povoado por algumas árvores pequenas. Ao fim de cerca de 70km chegamos ao início do troço que vamos reabilitar. Reparo que o Vasco abranda e abrando também, sem perceber porquê. Ao olhar através do vidro, reparo que ele e os argelinos olham para a esquerda e olho também. Acima do horizonte está o sol, já completamente erguido sobre as montanhas. Devido à areia que cobre sempre a linha do horizonte, pode olhar-se para o sol directamente para se ver um círculo cuja cor se altera gradualmente do laranja a um amarelo pálido, de baixo para cima. Nas nuvens, o amarelo expulsou quase todo o cinzento, pelo que tenho a certeza de que elas têm sabor a baunilha.

Retomamos a viagem, que está quase no fim. O sol vai-se erguendo cada vez mais sobre a areia em suspensão no horizonte e torna-se cada vez mais difícil de olhar directamente para ele. Agora, a estrada voltou a ser apenas de terra batida, e assim continuará até ao nosso destino. Quando sairmos das carrinhas para trabalhar e começarmos a suar, já o sol assumiu a sua faceta implacável de astro luminoso e quente: as nuvens voltaram a ser feitas de água.

13/08/2007

Monte Hadriane

Antes de me deitar, abri a persiana com a máquina fotográfica na mão, embora já não tivesse esperanças de ver o famoso céu estrelado do deserto. Estamos demasiado perto de uma cidade e há sempre demasiada poeira no ar para que se consiga ver o céu nocturno nitidamente. As luzes da cidade iluminam as partículas de poeira, o que cria uma grande luminosidade sobre a cidade e não permite ver bem o céu. Ponho a cabeça de fora, olho para cima e vejo o que estava à espera: uma ou duas estrelas e o resto do céu escondido. De repente vejo um flash à minha direita e reparo que, na janela do quarto ao lado do meu, está o Rogério de máquina fotográfica em riste com o mesmo intuito que eu. Chamo-o e comento que até no deserto somos vizinhos: em Portugal, vivemos na mesma cidade e somos praticamente vizinhos, mas só nos conhecemos em Tamanrasset.

Conversamos durante um bocado sobre as impressões que temos disto. Ele chegou à Argélia uns dias antes de mim, um pouco a contragosto. A realidade é que toda a gente que tenho conhecido desde que cheguei está cheia de saudades e vontade de ir embora. Consideram o local duro, o povo difícil, o trabalho árduo, e têm saudades da vida que tinham em Portugal. O Rogério ainda está anestesiado, creio, por ter chegado há pouco tempo, embora esteja a ambientar-se bem. A conversa acaba por chegar ao tema das dificuldades iniciais aqui na obra.

Os primeiros que aqui chegaram passaram um mau bocado. Tenho bastante sorte por chegar cá e encontrar à minha espera um quarto que é arrumado todos os dias, uma cozinha funcional, uma antena parabólica que nos traz televisão e internet. Os colegas que aqui vieram no início de tudo viviam em casas alugadas com condições muito pouco confortáveis, tinham que tomar banho na casa de uns e ir cozinhar a casa de outros, não comunicavam com Portugal, não tinham meios de transporte próprios, enfim: várias circunstâncias que me levaram a gostar ainda mais deste estaleiro.

Diz quem está cá há muito tempo que o que custa não é a primeira viagem para cá, mas sim a segunda. Depois de uns meses cá, passamos umas férias em Portugal, e na hora de voltar para a Argélia é-se assolado por um desespero enorme. É a opinião de quem já passou por isso, e várias pessoas me disseram o mesmo. Eu e o Rogério ainda temos que esperar para ver se é mesmo assim, apesar de sabermos que é isso que nos espera. Vem assim à baila o assunto do Monte Hadriane, que já ambos conhecemos. O Monte Hadriane é uma formação montanhosa escarpada com uma forma incomum, que se vê de Tamanrasset e do nosso estaleiro quando está bom tempo e há pouca areia no ar. Mas quando a poeira e a areia no ar são tais que nem o Monte Hadriane se vê, todos os voos de e para Tamanrasset são cancelados. Consta que os portugueses que estão quase a partir de férias começam a deitar muito o olho ao Monte Hadriane, preocupados, porque se este não se conseguir ver no dia da partida, as suas férias são adiadas.

Sorrio porque me enternece este tipo de pormenores e porque já adivinho que, por ironia, vou ter umas férias adiadas devido à areia tapar o Hadriane. Despeço-me do Rogério até amanhã, desligo a máquina fotográfica e, admitindo a minha primeira derrota contra a areia em suspensão, desisto de tentar fotografar as estrelas.

Tamanrasset

Tamanrasset – ou Tam, como carinhosamente lhe chamam os argelinos – é a maior cidade do Saara central e a mais isolada da Argélia. Considerada a “capital do Saara”, devido à existência de água e solo fértil em quantidades invulgarmente abundantes em climas desérticos e à sua história como entreposto comercial de várias rotas do deserto, Tamanrasset sobrevive com base no comércio e na agricultura e alberga cerca de 70.000 habitantes (sendo a maior parte constituída por Tuaregues). Fica situada a 1.400 metros de altitude nas Montanhas Hoggar (ou Ahaggar), o que torna o seu clima um pouco mais ameno do que noutras regiões do deserto. A paisagem é maioritariamente constituída pelas rochas vulcânicas das Montanhas Hoggar. Como todas as grandes cidades da Argélia, Tamanrasset tem um aeroporto doméstico que disponibiliza apenas voos da Air Algerie para Argel, que fica a cerca de 2.000km.

Pelo que pude ver desde que aqui estou, Tamanrasset é uma cidade grande demais para ser uma vila, embora tenha o aspecto de uma. As casas são baixas e têm tons de castanho, vermelho e amarelo. Os lancis dos passeios são pintados às riscas vermelhas e brancas. As ruas principais são pavimentadas e as secundárias são em terra batida. Muitos passeios são cobertos por arcadas vermelhas e brancas encimadas por traves de madeira, extremamente bonitas. Há imensas lojas em todas as ruas, como cafés que servem apenas água, chá e sumo, pizzarias, frutarias, mercearias, mercados, lojas de ferragens, roupa, souvenirs, pneus e peças para automóveis: todas situadas em edifícios de aspecto descuidado, excepto as lojas das redes móveis argelinas, como a ALG Mobilis e a Djezzy, que têm um interior cuidado, limpo e modernamente mobilado como aquelas a que estamos habituados em Portugal. Durante o dia, a cidade fervilha com actividade. Argelinos do sul e do norte, malianos que fugiram do seu país à procura de vidas melhores, bandidos do deserto que procuram passar despercebidos e tuaregues que descansam do deserto misturam-se nas ruas, praças e esplanadas, criando uma mistura engraçada de povos e cores. É frequente verem-se tuaregues de óculos de sol ao volante de jipes ou a falar ao telemóvel. Os homens andam de mão dada e cumprimentam-se com dois ou quatro beijos na cara, dependendo do grau de amizade. E, de vez em quando, encontra-se um turista europeu no meio desta caldeirada de culturas africanas.

O parque automóvel é também sui generis. Exceptuando os jipes de instituições estatais e uma ou outra carrinha todo-o-terreno, quase todos os carros estão a cair aos bocados. Há imensos Peugeots e, entre estes, há imensos 504. O trânsito é muito mais calmo que o de Argel, embora seja igualmente desordenado: é mais fácil habituarmo-nos do que pensamos. Uma coisa que me faz imensa confusão é que, na Argélia, quem entra numa rotunda é quem tem prioridade, obrigando quem já está na rotunda a ceder passagem. O que vale é que, como a nossa obra tem algum relevo para esta zona e a nossa empresa veio dar muito emprego à população, somos bastante considerados pela cidade e a polícia é branda. Há imensas barreiras policiais por toda a cidade, como também já havia em Argel: abrandamos, se for de noite pomos os mínimos e acendemos a luz do habitáculo para que nos consigam ver a cara, cumprimentamos e passamos.

Há cabras vadias à solta pela cidade, que é frequente encontrarmos a comer papel, plástico e lixo diverso. Não creio que seja uma estratégia das autoridades governamentais de Tamanrasset para tentar limpar o imenso lixo que há por toda a parte: as cabras vêm do deserto que rodeia a cidade, que tem alguma vegetação, à procura de comida. São fáceis de encontrar numa oued grande, cheia de lixo, que atravessa Tamanrasset.

Trabalho com vários argelinos de Argel e nenhum deles gosta de Tamanrasset, apesar de entenderem que os europeus possam a achar engraçada. É realmente um destino turístico muito exótico, embora numa perspectiva argelina seja apenas uma cidade pobre, muito militarizada e subdesenvolvida. Muitos argelinos de Tamanrasset querem sair daqui para sempre, e muitos europeus querem vir para aqui uma semana ou duas: e esta é a melhor descrição que consigo fazer.