26/10/2007

O Dom Afonso Henriques

No dia a seguir a ter chegado de férias, uma sexta-feira, houve jogo de futebol entre portugueses e argelinos. Oito portugueses contra doze argelinos. Muitos portugueses não pegavam numa bola há muito tempo. Eu próprio já não jogava futebol há anos. Perdemos, mas não faz mal: conforta-me saber que a mouralhada já levou porrada nossa que chegue.

O Portugal (Argélia entre parêntesis durante um bocado)

'Congé' é uma palavra que se usa muitas vezes aqui. A política de férias na Argélia é boa, sendo estas por norma longas, sobretudo se se trabalhar no sul. A rotatividade do pessoal do laboratório argelino que fiscaliza o nosso trabalho é grande, e quando partem de férias fazem-no por períodos de um mês ou dois. Em meados de Outubro, foi a minha vez de ir de férias a Portugal. "Moi? Congé."

Quando aterrei em Argel às tantas da madrugada e caía uma chuva miudinha e fria enquanto eu esperava que me viessem buscar, não fazia ideia que, ao chegar a Lisboa no dia seguinte me ia sentir quentinho por dentro. Não devido ao sol, mas ao aconchego e à pressa de viver uma semana intensamente. Não imaginava o prazer que ia sentir ao ter dificuldade em vencer o trânsito da rotunda do relógio, ao acelerar na autoestrada rumo a casa, ao beijar a família, ao abraçar o cão, ao almoçar num restaurante, ao abraçar os amigos, ao tomar um café no café de sempre, ao sair à noite, ao beber uns copos, ao combinar tanta coisa com tanta gente, ao ouvir reprimendas das pessoas com quem não tive tempo de estar, ao contar histórias, ao ouvir histórias, ao dormir num quarto a sério, ao comer comida a sério, ao comer comida de plástico, ao sentir-me confortável finalmente, ao pensar que afinal as saudades eram muitas, ao pensar que afinal tinha mais saudades ainda do que pensava, ao pensar que as saudades não são mais que dias de chuva que fazem dar valor aos dias de sol, ao pensar que a chuva miudinha e fria com que Argel me recebeu às tantas da madrugada não era mais do que um abraço de boas-vindas, ao pensar que afinal de contas o deserto não é assim tão duro, ao lembrar-me - que diabo - que o deserto não custa assim tanto, ao verificar que se eu não fosse tão distraído assim tinha reparado há uns meses atrás no bom presságio que era os dinossauros coloridos do relógio da minha cozinha estarem a sorrir para mim.

14/10/2007

O jejum

Nos meus aniversários, costumo receber uma carta de parabéns de uma instituição para a qual dava sangue quando era estudante. Nesta, desejam com eufemismos comerciais que o meu aniversário se repita por muitos anos para poder continuar a dar sangue. Ou seja, convém que o gajo que dá sangue viva muito tempo para garantir um certo stock: acho alguma piada ao facto de mo dizerem frontalmente logo no meu dia de anos, como se não tivessem vergonha de admitir. É reconfortantemente sincero.

O fim do Ramadão é assinalado por uma festa chamada Aid El-Fitr, cujo nome significa "fim do jejum". É um feriado tão importante para os islâmicos como o Natal é para os cristãos.

Os festejos começaram às oito da manhã com uma reza ao ar livre que juntou imensa gente numa oued que atravessa o centro da cidade. Imensas pessoas fizeram as suas orações em conjunto nesse local, virados para Meca. Depois da reza, veio a hora da refeição que iria vingar o mês de jejum: os crentes comeram imenso, juntaram os entes queridos e ofereceram prendas uns aos outros. As ruas de Tamanrasset encheram-se de vida: as pessoas vestiam roupas melhores e mais coloridas, percorriam as ruas em pequenos grupos alegres e levavam doces e garrafas na mão. A cidade ficou animada até altas horas da noite. Ninguém trabalhou no dia seguinte devido ao feriado e, em alguns casos, a indigestões nos estômagos desabituados a grandes farturas.

A propósito dos parabéns dos senhores do sangue, lembrei-me que, certa noite, acordei com o toque de uma mensagem de texto no meu telemóvel com número argelino. A Mobilis, operadora de telecomunicações da Argélia, desejava-me um feliz Aid El-Fitr. Já foi há algum tempo atrás, mas lembrei-me disso porque enquanto escrevia este texto a nossa ligação à internet da Mobilis foi abaixo. Podia dizer que as felicitações são secundárias relativamente ao serviço pago. Mas o facto é que, quando recebi a mensagem naquela noite, eram quase horas de acordar e já estava, de facto, com um ratito no estômago.

12/10/2007

Assekrem

Lembro-me de uma tarde, nos meus primeiros tempos aqui, em que entrei na sala de reuniões que esperava encontrar deserta e me deparei com uma senhora de meia-idade vestida como as mulheres locais, sentada numa cadeira de costas para a porta que eu acabava de transpor. Nunca a tinha visto. Sabia que ela não trabalhava connosco, até porque ela não estava a trabalhar: lia um livro pequeno e parecia estar à espera de qualquer coisa. Ao ouvir-me entrar, virou-se para mim e cumprimentou-me em português. Depois de alguns minutos de conversa, fiquei a saber que a senhora era professora de História em Lisboa e estava a visitar Tamanrasset e o Hoggar como turista pela segunda vez. O guia que tinha contratado contou-lhe que havia portugueses a trabalharem na zona e prontificou-se a trazê-la ao nosso estaleiro enquanto esperava pelo seu avião de regresso. Estava vestida daquela forma porque tinha perdido a mala durante um voo, pelo que, segundo ela, tinha sido obrigada a comprar roupas locais. Gabou-me a sua viagem e o seu guia: conheceu paisagens incríveis do Hoggar, viu as gravuras rupestres que abundam aqui na zona e conheceu o Assekrem. O Assekrem é uma zona montanhosa com um nascer e um pôr-do-sol magníficos e um dos sítios mais altos da Argélia (estatuto perdido por uns duzentos metros). Já tinha visto fotografias e lido sobre este local antes de vir para a Argélia: muitos turistas vão visitar o Assekrem e passam lá uma noite, para verem o sol a pôr-se e a nascer. Por isso, quando a mulher me perguntou se eu queria ver as fotografias que ela tinha tirado, respondi:
- Não.
Porque sabia que nenhuma fotografia faria jus a uma aurora ou crepúsculo. E porque tencionava lá ir um dia.

A visita ao Assekrem foi combinada com alguns dias de antecedência, o que garantiu uma aderência e organização credíveis. Seria uma caravana de quatro carrinhas com vários portugueses e dois argelinos que trabalham connosco como motoristas de camião. Um deles foi guia turístico num emprego anterior e seria o nosso guia nesta viagem: ninguém sabe ao certo o seu nome, porque todos o tratam pelo apelido carinhoso de Bob Marley. Saímos do estaleiro e atravessámos a cidade, seguindo para leste. O Assekrem fica a oitenta quilómetros de Tamanrasset, o que não implicaria uma viagem longa se não fosse o estado do caminho até lá. Aliás, falar em caminho é um luxo: metade do percurso é sobre pistas de terra batida e a outra metade é sobre trilhos de pedra que põem qualquer pneu em pânico. Portanto, duas horas e meia para cada lado, fora o tempo investido em paragens para tirar fotografias.

A primeira paragem sugerida pelo Bob Marley foi no sopé de um monte com cerca de vinte metros de altura, no cimo do qual estava a ruína de uma guarita construída com pedra local nos tempos da ocupação francesa. As suas paredes interiores estavam cobertas de inscrições árabes gravadas na pedra que terão sido gravadas durante longos períodos de vigia, após um pequeno combate como celebração de vitória, ou por vândalos que sucederam à guerra. Dali, tem-se uma boa perspectiva da região circundante e nada mais, até se descer.

Perto dali, parámos no segundo ponto de interesse: um pequeno lago que se formou na base de várias escarpas verticais em pedra. 'Boas para fazer escalada', comentou-se. Água turva, nada de invulgar se não fosse a maior massa de água permanente que tínhamos visto cá até àquela altura. Seguimos viagem depois de algumas fotografias.

O percurso que encetámos a seguir, indicado pelo Bob Marley, deu-nos a certeza de estarmos a abandondar a paisagem típica de Tamanrasset para a substituir por uma de rocha. Por entre planaltos constituídos unicamente por pedras pequenas apenas desafiadas por oueds ocasionais e escarpas rochosas de agulhas vulcânicas, avançámos algumas dezenas de quilómetros na direcção das montanhas. Tínhamos a nítida sensação de estar sempre a subir apesar da monotonia da condução. Da condução, não do traçado: na paisagem de pedra surgiram dromedários, burros, pequenos indícios do Homem como placas que designavam sítios estranhos que ninguém no mundo sabe que existem e postes com pequenos cilindros em cima que ninguém no mundo sabe para que servem. E, à frente de tudo isto, umas flores vermelhas que encontravam o sol nos espaços entre as pedras. As flores também faziam a minha imaginação trabalhar e passavam a ter características místicas como efeitos medicinais incríveis, desabrochar apenas uma vez na vida para morrer logo depois ou simplesmente serem obra de um capricho da natureza que, segundo se lê na paisagem, ainda tem muito que fazer por aqui até esta região se tornar suportável.

A visita seguinte foi em mais uma massa de água acumulada por entre a rocha: desta vez, um riacho. Um curso de água que descia das montanhas engordava naquela zona há tempos infindos, a julgar pela forma lisa e arredondada das rochas e pela presença de peixes. Peixes no Saara guardados por um tuaregue solitário cujo trabalho é ser "o guarda das montanhas", como informou o Bob Marley. Vive numa cabana com um jipe branco estacionado em frente e mostra a zona aos turistas que o abordam. Depois da visita e das fotografias, continuámos a subir pelas montanhas.

A partir do riacho com os peixes, o caminho parecia-se com tudo menos um caminho. Os pneus rolavam sobre trilhos de pedra mais enterrada que a circundante, fazendo adivinhar um trilho e temer os furos. As carrinhas seguiam devagar, à velocidade do passo de uma pessoa. As formações vulcânicas que caracterizam a zona tornavam-se cada vez mais frequentes e assumiam formas cada vez mais invulgares. À nossa volta, ao perto e ao longe, viam-se as montanhas a perder de vista, já abaixo de nós.

Os últimos dez quilómetros são terríveis: demoraram meia hora a fazer. No fim do trilho encontra-se uma espécie de aldeia constituída por uma estalagem com alguns quartos e sala de refeições, uma base militar para os guardas da zona e um pequeno armazém com geradores de electricidade e painéis solares no telhado. O Assekrem fica mais acima ainda, a umas dezenas de metros que têm de se percorrer a pé. O trilho lá para cima vence um grande declive por troços em ziguezague. Alguns turistas franceses estavam já a subir quando lá chegámos, mas - à boa moda portuguesa - ainda tivemos tempo de lanchar antes de subir: sandes, panados, sumos e cerveja trazidos de Tamanrasset.

A palavra 'assekrem' significa, na língua regional dos tuaregues, 'fim do mundo'. Pelo caminho que tem de se fazer para lá chegar, talvez seja um nome apropriado, mas a paisagem parece mais o princípio de alguma coisa que talvez uns milhões de anos mais tarde se transforme - aí sim - no mundo. No cimo do trilho existe um planalto enorme que deixa ver as montanhas até onde a vista alcança. Cada forma estranha de cada pináculo é revelada e deixa de parecer bizarra para parecer apenas bonita, inserida num todo que agora se consegue perceber visto de cima. Nesse sítio, existe uma casinha minúscula e uma capela onde viveu o padre Charles de Foucauld - Père de Foucauld -, um boémio que se converteu ao espiritualismo e veio procurar sossego e meditação nas montanhas do Hoggar. Pregou uma palavra muito própria e elaborou um dicionário da língua local dos tuaregues até ser assassinado em 1916 à porta da sua cabana devido a divergências religiosas.

Após a visita à última parte da vida deste padre, dirigimo-nos para o extremo oesto do planalto, onde o sol já se preparava para desaparecer. A luz derradeira do dia era rosada e pousava na face das montanhas explicando cada reentrância e saliência com calma. Ao pôr-se depressa atrás dos últimos píncaros do horizonte, o rosa transformou-se em laranja e espelhou-se nas nuvens. Tudo à nossa volta incluindo as pedras, as montanhas, nós e até os turistas franceses ficou alaranjado de um lado e escuro do outro, de uma maneira em que os dois tons se fundiam para retirar a identidade a cada coisa e tornar tudo numa só: a luz. As nuvens tornaram-se cada vez mais alaranjadas até que começou a escurecer. No fim, as pedras voltaram a ser pedras, os turistas voltaram a ser turistas e os portugueses falaram em regressar a Tamanrasset porque não seria fácil fazer o caminho de regresso no escuro apesar do Bob Marley. Pudera: um pôr-do-sol majestoso como este rouba toda a luz da região durante várias semanas - não percebo os painéis solares - e ninguém me convencerá do contrário.