19/12/2007

Estes não são os carros de Gary Numan

De vez em quando, uma caravana de carros semi-novos passa pelo deserto em direcção à fronteira. Peugeots e Volkswagens sobretudo. Os locais explicam que se trata de comércio ilegal de automóveis, que são comprados ou roubados na França e na Alemanha e trazidos para o Niger para serem vendidos. Vêm de Argel e passam por Tamanrasset e In-Guezzam. Dão nas vistas no caminho que fazem entre estas duas últimas localidades, porque as viaturas vulgares nas pistas são todo-o-terreno. Por isso, quando alguém vê uma fila de carros urbanos a levantar pó pelas pistas, já sabe do que se trata. Como lhe chamam os locais: "Máfia".

No caminho que separa Tamanrasset da fronteira há imensos esqueletos de carros abandonados. O número de carcaças aumenta à medida que nos aproximamos de In-Guezzam, talvez por o percurso ser mais exigente ou por ser mais difícil de conseguir a assistência mecânica das oficinas de Tamanrasset. Alguns ainda exibem a pintura e permitem distinguir de que carro se trata, mas a maior parte está ferrugenta, amolgada e para lá de qualquer identificação. Alguns foram carros de habitantes locais que a certa altura se cansaram de vez, outros foram veículos de turistas cujas viagens correram mal e uma parte – carcaças de camiões – foi de serviços de transporte vencidos pelo deserto. A posição em que estão é, em alguns casos, reveladora do que lhes aconteceu: alguns carros estão virados ao contrário e outros estampados em pedras. Existe até um cemitério destas carcaças, a alguns quilómetros de In-Guezzam, para norte.

Coisas normais na região que se tornaram míticas. Ao fim de alguns tempos a conduzir nas pistas, apercebemo-nos de que a estrada já existe há muito tempo, não está é nivelada nem alcatroada. Não sei é se, depois de a estrada estar feita, os todo-o-terreno da região vão ficar contentes: estão habituados à exclusividade das pistas e ninguém gosta de perder um monopólio.

Depois de escavarem a areia em redor das rodas da frente, os serventes da obra começaram a empurrar o primeiro automóvel da caravana de três, que estava atascado na areia e não conseguia sair do sítio só com a força dos outros condutores. Dei-lhes uma mão: eu próprio já fui empurrado também. Ao fim de alguns sacões, o carro saiu do sítio. Os condutores agradeceram e continuaram para o sul, onde alguém lhes havia de pagar pela viagem.

17/12/2007

Moula-moula

Omar, o engenheiro argelino, aponta-me um pássaro que passa a voar à frente da carrinha onde seguimos e diz que avistar esta ave é sinal de boa sorte. Chama-se 'moula-moula'. Parece uma andorinha com uma mancha branca na cabeça e costuma andar por sítios onde há água. Os tuaregues e os viajantes do deserto em geral sabem que, se virem um pássaro destes, é porque existe água nas imediações. Segundo o Omar, é um animal simpático que se aproxima de nós desde que, claro, estejamos quietos.

Os camiões-cisterna que transportam água para a obra são verdadeiros destroços de guerra. Ivecos, Berliets, MANs com trinta anos ou mais, decanos das pistas, enchem o tanque de água num poço situado a trinta quilómetros de Tamanrasset e esvaziam-no na obra, a cinquenta quilómetros desse poço. Com o avanço da obra, esta distância tende a aumentar muito, o que levanta algumas questões sobre o desempenho destes veículos no futuro. Quase todos se deslocam a passo de caracol, muitos apresentam sinais de velhice e ferrugem irreparáveis e alguns demoram vários minutos até conseguir engatar a marcha-atrás. Uma boa parte deles tem furos na cisterna e deixam rastos de água por onde passam: os furos são pequenos o suficiente para a água chegar praticamente toda ao destino mas grandes o suficiente para se tornarem caricatos. É vulgar avariarem, condenando os motoristas a passarem noites no deserto. Porém, estes já estão habituados a esses contratempos e fazem-se acompanhar de água e comida, que penduram no exterior do camião. A água viaja em odres – peles de cabritos há muito digeridos – suspensos na lateral da viatura para conservar a frescura, e a comida consiste, em parte, em pedaços de carne pendurados na parte da frente da cisterna. É, eufemisticamente, prático.

Os motoristas convivem com as avarias com a naturalidade com que as pessoas de vida dura encaram as dificuldades. Conhecem as manias ao camião e tentam reparar a avaria com as ferramentas que trazem. Se não conseguirem, mandam o companheiro pedir boleia aos carros que passam e ir à cidade buscar ajuda: é por isso que viajam sempre acompanhados de um ou mais motoristas.

A água, muito necessária aos trabalhos de terraplenagem, é um dos problemas mais graves com que lidamos. E qualquer um de nós cedo se apercebeu de que não podíamos contar com aquilo a que estávamos habituados em Portugal. Em Tamanrasset não é fácil arranjar camiões decentes, mas há já alguns meses que trabalhamos com estes e, mal ou bem, a água lá vai chegando à obra. Às vezes mais mal que bem, mas não há problema: também nós encaramos com naturalidade – aquela com que às vezes se devem encarar as dificuldades – o facto de sermos servidos por estes camiões. Têm décadas de pistas e deserto no lombo, já viveram mais vidas e sofreram mais mortes do que qualquer pessoa e, se virmos bem, nem toda a gente tem o privilégio de trabalhar com verdadeiras relíquias viajantes que, de tão selvagens, até requerem dois ou três homens para as domar.

O pássaro preto aproxima-se de mim aos saltos. Pára a uns três metros de mim e fica a olhar-me de lado. Fico quieto a ver o que ele faz, e o animal aproxima-se cautelosamente dos meus pés para beber a água de umas pequenas poças criadas pelas fugas do tanque de um camião.
- Olá passarito, estás bom?
A ave, ao beberricar saltitando, parecia concordar que os camiões não são, de facto, grande pistola.

10/12/2007

In-Guezzam

A vila – ou aldeia? – de In-Guezzam, no extremo sul da Argélia e a quatrocentos quilómetros de Tamanrasset, é para todos os efeitos o fim da linha. Da nossa linha. Pelo menos, quase: Apenas uma dezena de quilómetros – que serão construídos por nós, portugueses – a separa da fronteira com o Niger. Para lá, estão sítios que posso apenas considerar como sendo míticos e de fantasia, devido ao que se ouve dizer deles e a nunca os ter visto. Ao fim de uns tempos nesta região, começam a conhecer-se histórias de miséria, contrabando, crimes e emigração arriscada. Tudo camuflado e protegido pela areia, pelos montes de pedra e pelas grandes distâncias.

A zona onde há alguma água e verdura, uma rua principal com candeeiros e terra ladeada por casas castanhas que se espraiam em seu redor, lojas de portas abertas a oferecer pão, ferramentas e roupa – a escuridão dos seus interiores sugere-as como frescas, mais pela opressão do calor cá fora do que propriamente pelos seus atributos térmicos –, serviços simples como correios, postos de polícia e bombas de combustível, doze meses de calor por ano e areia por todo o lado – mesmo no vento –, é In-Guezzam. Na rua principal agrupam-se polícias de fronteira, miúdos saídos da escola e automóveis que esperam à porta das bombas que chegue combustível do norte. À volta da localidade pastam cabras guardadas por tuaregues preguiçosos, o que me leva a perguntar ao Sidi Mohamed – que faz parte da nossa pequena comitiva de estudo da subempreitada que ali vamos fazer – o que é que elas comem. Diz ele que este gado é criado do outro lado da fronteira, onde há vegetação, e só está aqui para ser vendido. Dezenas de cabeças.

À hora de almoço, já a comitiva de estudo tinha acabado o estudo, pelo que restava apenas a comitiva. Estacionámos às portas da vila e instalámo-nos num tapete estendido sobre a areia. O Sidi Mohamed informou-nos que a refeição ficaria por sua conta, mandou alguém à cidade chamar um cozinheiro e afastou-se para ir negociar um cabrito com os tuaregues que pastoreavam por ali. É Dezembro mas está calor: desapertam-se camisas, abanam-se t-shirts e viram-se caras na direcção da brisa. Para trás de nós está a vila, para a nossa frente está o areal interminável do qual emergem cabeços arredondados de pedra escura. Do rádio das carrinhas sai música que, misturada com o calor e a brisa, lança a languidez de um verão na atmosfera.

Quando o Sidi Mohamed regressa ao pé de nós com o cabrito, já o cozinheiro está à espera. Numa questão de minutos, o cabrito é degolado e desmanchado na areia. É grelhado num pequeno braseiro que foi ardendo entretanto e ao fim de uma ou duas horas é-nos oferecido numa terrina acompanhado de pimentos e cebola. Até gosto de cabrito, mas neste não toquei. Comi uns pedaços de frango – esse não morrera à minha frente – que tínhamos trazido de Tamanrasset.

Antes de nos fazermos ao caminho ainda ficámos ali um bocado. Parecia mesmo verão. Estávamos numa praia gigante, que tinha de sobra em areia o que lhe faltava em mar. Observávamos os tuaregues que entretanto carregavam o resto do gado caprino para um camião. Aproxima-se uma grande festa islâmica, em que a tradição manda comprar um cabrito e comê-lo com a família: vão conseguir vender todas as cabeças. Quando partimos, ao início da tarde, In-Guezzam está sossegada atrás de nós. Não há grande trânsito nem se vê muita gente na rua. Se calhar, penso eu, quase toda a actividade que traz vida a esta vila é feita fora dela. No Niger e em Tamanrasset. É que, apesar de ser um pardieiro árido e desolador, In-Guezzam tem uma pequena mas importante imagem de limite quimérico entre um nada e um tudo existentes em ambos os lados, ou não fosse uma localidade fronteiriça: para nós e para o cabrito é o fim da linha, mas para muita gente é apenas o início. Aliás: o meio.

Passados vários dias, durante uma viagem para a obra, pergunto ao Sidi Mohamed o que quer dizer ‘In-Guezzam’. No seu francês de fraca qualidade, responde-me que o nome da localidade se refere ao facto de, há muito tempo atrás, se degolarem muitas pessoas naquela zona. Passa-me pela mente um comentário sobre a degolação de caprinos que não consigo travar antes de me sair da boca.

08/12/2007

As flores lilases

Numa rua qualquer de Tamanrasset, dois miúdos, um rapaz e uma rapariga com não mais de três anos, gatinham pelo meio do lixo à procura de algo para comer. Estão praticamente nus e exibem a magreza de quem passa fome a sério. Às tantas, o rapaz sente-se mal e vomita. A menina avança na sua direcção e começa a comer o que ele deitou para fora.

Na televisão estava a passar o festival Eurovisão Júnior, no qual crianças de vários países interpretavam canções acompanhadas de coreografias, apresentadas por um homem louro nos seus trintas vestido com um blazer às flores em tons lilases. Os portugueses assistiam à retrospectiva das actuações dos vários países que antecedia a votação final. Crianças sorridentes de trajes e penteados extravagantes cantavam, dançavam, saltavam, aplaudiam e atribuíam pontos numa amálgama de luz e cor que, segundo era propagandeado de tempos a tempos, era proporcionada em parceria com a Unicef numa iniciativa de angariar fundos para combater a miséria nos países do terceiro mundo. De facto, a imagem da caixinha mágica por vezes dividia-se ao meio para exibir, numa das metades, o festival de música e, na outra, imagens de fome e crianças magras oriundas de um país qualquer que ninguém especificou. Nenhum locutor ou voz-off comentava as imagens de miséria: simplesmente eram lá colocadas como parte de uma edição de imagem definida por um realizador invisível, talvez numa tentativa de sublinhar a mensagem de caridade. Passados alguns segundos, o monopólio do ecrã era devolvido ao apresentador florido e às saltitantes crianças europeias.

Eu estava na sala a assistir ao festival e interrogava-me se mais alguém se apercebia do que se estava a passar. Sempre fui céptico em relação a grandes festas de angariação de fundos para uma iniciativa caritativa qualquer, não por acreditar que o dinheiro não chegue ao destino para que é pedido, mas sim por considerar que a caridade não deve ser feita assim. E as vestimentas e cabelos das crianças pareciam dar-me razão a cada saltinho.

Talvez seja por pensar assim que fiquei surpreendido ao não ficar minimamente aborrecido quando a Bielorússia ganhou e Portugal ficou no fundo da tabela. Nada aborrecido mesmo. Aliás, deve ser tudo impressão minha: de certeza que o dinheiro será entregue, de certeza que a iniciativa terá bons frutos, de certeza que a canção da Bielorússia era mesmo boa, de certeza que as crianças europeias serão felicitadas pela sua boa prestação enquanto as crianças africanas comem o arroz sorrindo, de certeza que toda a gente ficará contente com o resultado, de certeza que o realizador invisível é um génio que nos faz um favor quando nos exibe a miséria durante poucos segundos e no resto do tempo mostra luzes, cores, crianças sorridentes, apresentadores animados e flores lilases.