30/11/2007

Sidi Mohamed

É fácil ver ao longe quando é o Sidi Mohamed, o tuaregue rico, que está à porta do estaleiro à espera de ser recebido. Usa sapatos caprichados, óculos à aviador, relógio dourado e está sempre vestido com uma fatiota típica chamada bazane, uma espécie de grande bata com que cobre o corpo todo. Tem vários bazanes, todos de cores inacreditavelmente berrantes: cor-de-rosa, verde-claro, azul-turquesa, amarelo, lilás escuro e até um com riscas tão coloridas que fariam o arco-íris corar de inveja. É um vigarista de trazer por casa e, como tal, não deixa escapar nenhuma oportunidade, por mais remota ou absurda que possa parecer, de ganhar uns trocos. Ele próprio admite isso e diz que é um "desert bandito". É um subempreiteiro nosso e, por ser uma relação que envolve dinheiro, trata bem os portugueses. Em suma: como muitos árabes da região, é um fura-bolos. No entanto, não deixa de ser uma figura bonacheirona e simpática devido ao seu je ne sais quoi que me faz gostar dele e começar a rir mal o veja ao longe. Cumprimenta-nos efusivamente: aperta-nos a mão, puxa-nos com força contra ele, dá-nos dois beijos na cara, deixa a sua cabeça encostada à nossa e fica assim, muito quieto. Só quando se fala é que ele se afasta, e mesmo assim é raro não nos dar a mão enquanto conversamos. Toda esta manifestação de carinho, típica dos árabes mas inflaccionada no Sidi Mohamed, cai tão mal aos portugueses que chega a ter piada ver alguns de nós a tentar escapar aos seus cumprimentos. É um passarão que faz rir toda a gente.

Por isso é que, ao olhar para as riscas de todas as cores no bazane do Sidi Mohamed que tanto me alegram – e dando um sentido concreto a mais um lugar-comum –, percebo finalmente onde está o pote de ouro no fim do arco-íris.

Chicotadas psicológicas

- O quê? O Mourinho já saiu do Chelsea? – admirou-se o manobrador de cilindro.
- Não sabias? Já faz um mês... – observou o topógrafo.
- Um mês? Faz é dois meses! – corrigiu o director.
- E o Jorge Costa também saiu do Braga há para aí uma semana – voltou o topógrafo.
- Nã, três semanas! – disse o director.
- Eh pá, hoje não acerto uma...
- É o que dá, estar enfiado aqui no deserto... - observou o do cilindro.
E viraram-se novamente todos para a televisão.

29/11/2007

Dez

O velhote percorria a sua obra e, entre as instruções que ia dando aos seus trabalhadores, contava-me por alto a história da sua vida. É um homem simpático que se apresenta como Bob, diminutivo de Boubakeur. Apesar de a sua aparência o denunciar como argelino, a sua postura confere-lhe pinta de europeu: estudou na Argélia, doutorou-se em Londres, viajou um bocado por todo o mundo, criou família em Oran e uma pequena empresa que o trouxe até Tamanrasset, até nós. Caminha ao meu lado, com os seus óculos escuros e o seu lenço à volta do pescoço, e fuma em curtos bafos silenciosos. Apercebo-me de que o Bob diz aos trabalhadores para se esmerarem e se despacharem por minha causa: são nossos subempreiteiros. Fala-lhes em árabe e, para o fazer ver que eu o percebo, pergunto-lhe porque é que ele lhes está a dizer isso. Revela-me que usa o facto de eu estar ali para os fazer levantar o rabo do selim. Diz-me ainda que nunca se deve dizer que o trabalho de um subalterno é bom, mesmo que o seja.
- É um truque de relações humanas - diz ele - Desta maneira, o trabalhador não se sente indispensável e tenta sempre fazer melhor.
Replico:
- Mas, quando trabalhas para outra pessoa, que mal há em elogiarem o teu trabalho de vez em quando?
- Vou contar-te uma coisa que um professor de matemática uma vez me disse. Quando lhe perguntaram porque não dava nota vinte a ninguém, ele respondeu: "Vinte é para o bom Deus, dezanove é para mim, que sou professor, e dezoito é para o Bob."
Percebi a lição. E o velho pôs um grande sorriso antes de dizer que era barra a matemática.

10/11/2007

O mercado

São quase clichés as descrições de mercados em sítios exóticos, e toda a gente que me conhece sabe que sou uma vítima fácil de todos os clichés.

Toda a gente sabe que, quando se compra uma coisa num mercado, está-se na realidade a comprar duas: o artigo em si e o seu cheiro. O aroma das coisas é sempre mais intenso nesses sítios e povoa toda a atmosfera e envolve as lojas, quiosques e balcões, pelo que o dinheiro que se paga pelo que quer que seja que se compre, paga também o cheiro.

O mercado de Tamanrasset não é excepção: num grande terreno de terra batida e lancis mal amanhados, as lojas foram feitas em tendas que formam pequenas ruas e quarteirões de pano. Vende-se de tudo, e mesmo os artigos mais correntes que não dispõem da classificação eufemística de 'artesanato' são de qualidade duvidosa: perfumes, tapetes, tabaco, isqueiros, roupa, calçado, relógios, óculos de sol, brinquedos, produtos de higiene, alimentos. A falsificação de marcas é tanta e tão evidente que leva o visitante a interrogar-se se haverá alguma coisa genuína ali. A resposta depressa lhe chega ao nariz: o aroma de todo o comércio e mesmo das centenas de pessoas que falam alto, cozinham nas ruas e abandonam a loja sem risco de roubos mistura-se no ar e vai conduzindo o freguês por entre as lojas de paredes de tecido, para descobrir que, afinal, não existem apenas perfumes mas sim mil perfumes, não existem apenas tapetes mas sim mil tapetes, não existem apenas relógios, óculos, pulseiras, mas sim mil jóias que, não sendo de ouro ou pedras preciosas (abre-te Sésamo), possuem o mesmo brilho de um tesouro. Semeado em bancadas de madeira e tapetes numa esperança de que amadureçam na vontade de um comprador e ao alcance de um punhado de dinares.

Por isso, quando alguém vai comprar algo tão simples como um maço de cigarros, mesmo que o tabaco seja fracote, faz sempre bom negócio. O preço também nunca é elevado por aí além e existe sempre uma certeza de que os aromas, esses, não carecem de marca registada.

05/11/2007

Wrong kind of blues

Na banda sonora do filme 'A residência espanhola' está incluída uma música chamada 'Ai Du', do guitarrista maliano Ali Farka Touré. Quando vi esta fita, a canção despertou-me a atenção e comecei a ouvir o trabalho deste músico, o chamado "John Lee Hooker africano". Anos depois, já na Argélia, passeava-me pela obra com um CD deste intérprete no rádio da carrinha. Alguns dos argelinos que por vezes me acompanham reconhecem a música e o artista, e cantam a letra incompreensível enquanto abanam a cabeça de olhos fechados.

Os pretos do Niger e do Mali que vão buscar pedras às montanhas para construírem muros de gabiões são mão-de-obra barata para as empresas argelinas. Alguns nem recebem dinheiro: trabalham apenas para comer. Vivem em tendas improvisadas no meio do deserto por toda a duração da sua obra e instalam-se o mais confortavelmente possível. Fabricam cabanas com tábuas e plástico para dormirem, halteres com varões de aço e cimento para se exercitarem, e até guitarras com paus, latas e arames. Alguns, enquanto atiram pedras de um lado para o outro, cantam músicas melancólicas com letras incompreensíveis. As suas músicas, em particular, são o que mais me emociona. Sabe-se lá se são alegres ou tristes, de onde vêm, o que querem dizer, quem as compôs. Quando não há vento e o deserto está em silêncio, as suas vozes enchem o ar, o sítio ganha a banda sonora que se lhe adequa e surge uma atmosfera confortável, como se estar aqui começasse a fazer sentido: da mesma forma que nos filmes a música complementa a acção do ecrã.
É por isso que se ao passar perto dos muros e eles estiverem a cantar, aproximo-me muito devagar para que não reparem que cheguei.

Ao subir para a carrinha para ir fazer um trabalho a um quilómetro dali, o Mustapha, um servente preguiçoso, aponta para o rádio e pede-me entusiasmado:
- Ali Farka, Ali Farka!
Porque já tinha andado antes na carrinha comigo.