12/10/2007

Assekrem

Lembro-me de uma tarde, nos meus primeiros tempos aqui, em que entrei na sala de reuniões que esperava encontrar deserta e me deparei com uma senhora de meia-idade vestida como as mulheres locais, sentada numa cadeira de costas para a porta que eu acabava de transpor. Nunca a tinha visto. Sabia que ela não trabalhava connosco, até porque ela não estava a trabalhar: lia um livro pequeno e parecia estar à espera de qualquer coisa. Ao ouvir-me entrar, virou-se para mim e cumprimentou-me em português. Depois de alguns minutos de conversa, fiquei a saber que a senhora era professora de História em Lisboa e estava a visitar Tamanrasset e o Hoggar como turista pela segunda vez. O guia que tinha contratado contou-lhe que havia portugueses a trabalharem na zona e prontificou-se a trazê-la ao nosso estaleiro enquanto esperava pelo seu avião de regresso. Estava vestida daquela forma porque tinha perdido a mala durante um voo, pelo que, segundo ela, tinha sido obrigada a comprar roupas locais. Gabou-me a sua viagem e o seu guia: conheceu paisagens incríveis do Hoggar, viu as gravuras rupestres que abundam aqui na zona e conheceu o Assekrem. O Assekrem é uma zona montanhosa com um nascer e um pôr-do-sol magníficos e um dos sítios mais altos da Argélia (estatuto perdido por uns duzentos metros). Já tinha visto fotografias e lido sobre este local antes de vir para a Argélia: muitos turistas vão visitar o Assekrem e passam lá uma noite, para verem o sol a pôr-se e a nascer. Por isso, quando a mulher me perguntou se eu queria ver as fotografias que ela tinha tirado, respondi:
- Não.
Porque sabia que nenhuma fotografia faria jus a uma aurora ou crepúsculo. E porque tencionava lá ir um dia.

A visita ao Assekrem foi combinada com alguns dias de antecedência, o que garantiu uma aderência e organização credíveis. Seria uma caravana de quatro carrinhas com vários portugueses e dois argelinos que trabalham connosco como motoristas de camião. Um deles foi guia turístico num emprego anterior e seria o nosso guia nesta viagem: ninguém sabe ao certo o seu nome, porque todos o tratam pelo apelido carinhoso de Bob Marley. Saímos do estaleiro e atravessámos a cidade, seguindo para leste. O Assekrem fica a oitenta quilómetros de Tamanrasset, o que não implicaria uma viagem longa se não fosse o estado do caminho até lá. Aliás, falar em caminho é um luxo: metade do percurso é sobre pistas de terra batida e a outra metade é sobre trilhos de pedra que põem qualquer pneu em pânico. Portanto, duas horas e meia para cada lado, fora o tempo investido em paragens para tirar fotografias.

A primeira paragem sugerida pelo Bob Marley foi no sopé de um monte com cerca de vinte metros de altura, no cimo do qual estava a ruína de uma guarita construída com pedra local nos tempos da ocupação francesa. As suas paredes interiores estavam cobertas de inscrições árabes gravadas na pedra que terão sido gravadas durante longos períodos de vigia, após um pequeno combate como celebração de vitória, ou por vândalos que sucederam à guerra. Dali, tem-se uma boa perspectiva da região circundante e nada mais, até se descer.

Perto dali, parámos no segundo ponto de interesse: um pequeno lago que se formou na base de várias escarpas verticais em pedra. 'Boas para fazer escalada', comentou-se. Água turva, nada de invulgar se não fosse a maior massa de água permanente que tínhamos visto cá até àquela altura. Seguimos viagem depois de algumas fotografias.

O percurso que encetámos a seguir, indicado pelo Bob Marley, deu-nos a certeza de estarmos a abandondar a paisagem típica de Tamanrasset para a substituir por uma de rocha. Por entre planaltos constituídos unicamente por pedras pequenas apenas desafiadas por oueds ocasionais e escarpas rochosas de agulhas vulcânicas, avançámos algumas dezenas de quilómetros na direcção das montanhas. Tínhamos a nítida sensação de estar sempre a subir apesar da monotonia da condução. Da condução, não do traçado: na paisagem de pedra surgiram dromedários, burros, pequenos indícios do Homem como placas que designavam sítios estranhos que ninguém no mundo sabe que existem e postes com pequenos cilindros em cima que ninguém no mundo sabe para que servem. E, à frente de tudo isto, umas flores vermelhas que encontravam o sol nos espaços entre as pedras. As flores também faziam a minha imaginação trabalhar e passavam a ter características místicas como efeitos medicinais incríveis, desabrochar apenas uma vez na vida para morrer logo depois ou simplesmente serem obra de um capricho da natureza que, segundo se lê na paisagem, ainda tem muito que fazer por aqui até esta região se tornar suportável.

A visita seguinte foi em mais uma massa de água acumulada por entre a rocha: desta vez, um riacho. Um curso de água que descia das montanhas engordava naquela zona há tempos infindos, a julgar pela forma lisa e arredondada das rochas e pela presença de peixes. Peixes no Saara guardados por um tuaregue solitário cujo trabalho é ser "o guarda das montanhas", como informou o Bob Marley. Vive numa cabana com um jipe branco estacionado em frente e mostra a zona aos turistas que o abordam. Depois da visita e das fotografias, continuámos a subir pelas montanhas.

A partir do riacho com os peixes, o caminho parecia-se com tudo menos um caminho. Os pneus rolavam sobre trilhos de pedra mais enterrada que a circundante, fazendo adivinhar um trilho e temer os furos. As carrinhas seguiam devagar, à velocidade do passo de uma pessoa. As formações vulcânicas que caracterizam a zona tornavam-se cada vez mais frequentes e assumiam formas cada vez mais invulgares. À nossa volta, ao perto e ao longe, viam-se as montanhas a perder de vista, já abaixo de nós.

Os últimos dez quilómetros são terríveis: demoraram meia hora a fazer. No fim do trilho encontra-se uma espécie de aldeia constituída por uma estalagem com alguns quartos e sala de refeições, uma base militar para os guardas da zona e um pequeno armazém com geradores de electricidade e painéis solares no telhado. O Assekrem fica mais acima ainda, a umas dezenas de metros que têm de se percorrer a pé. O trilho lá para cima vence um grande declive por troços em ziguezague. Alguns turistas franceses estavam já a subir quando lá chegámos, mas - à boa moda portuguesa - ainda tivemos tempo de lanchar antes de subir: sandes, panados, sumos e cerveja trazidos de Tamanrasset.

A palavra 'assekrem' significa, na língua regional dos tuaregues, 'fim do mundo'. Pelo caminho que tem de se fazer para lá chegar, talvez seja um nome apropriado, mas a paisagem parece mais o princípio de alguma coisa que talvez uns milhões de anos mais tarde se transforme - aí sim - no mundo. No cimo do trilho existe um planalto enorme que deixa ver as montanhas até onde a vista alcança. Cada forma estranha de cada pináculo é revelada e deixa de parecer bizarra para parecer apenas bonita, inserida num todo que agora se consegue perceber visto de cima. Nesse sítio, existe uma casinha minúscula e uma capela onde viveu o padre Charles de Foucauld - Père de Foucauld -, um boémio que se converteu ao espiritualismo e veio procurar sossego e meditação nas montanhas do Hoggar. Pregou uma palavra muito própria e elaborou um dicionário da língua local dos tuaregues até ser assassinado em 1916 à porta da sua cabana devido a divergências religiosas.

Após a visita à última parte da vida deste padre, dirigimo-nos para o extremo oesto do planalto, onde o sol já se preparava para desaparecer. A luz derradeira do dia era rosada e pousava na face das montanhas explicando cada reentrância e saliência com calma. Ao pôr-se depressa atrás dos últimos píncaros do horizonte, o rosa transformou-se em laranja e espelhou-se nas nuvens. Tudo à nossa volta incluindo as pedras, as montanhas, nós e até os turistas franceses ficou alaranjado de um lado e escuro do outro, de uma maneira em que os dois tons se fundiam para retirar a identidade a cada coisa e tornar tudo numa só: a luz. As nuvens tornaram-se cada vez mais alaranjadas até que começou a escurecer. No fim, as pedras voltaram a ser pedras, os turistas voltaram a ser turistas e os portugueses falaram em regressar a Tamanrasset porque não seria fácil fazer o caminho de regresso no escuro apesar do Bob Marley. Pudera: um pôr-do-sol majestoso como este rouba toda a luz da região durante várias semanas - não percebo os painéis solares - e ninguém me convencerá do contrário.

1 comentário:

Unknown disse...

ainda mais vontade de visitar esse sitio... :)