07/01/2008

Coup d'état

Como não permitíamos aos condutores virar à esquerda no cruzamento, estes tinham que continuar em frente e inverter a marcha na rotunda do Lavradio, quatro quilómetros à frente, ou então virar à esquerda num outro cruzamento antes dessa rotunda e embrenhar-se nas ruas estreitas do Barreiro. Muitos condutores tentavam a sorte: perguntavam-nos se os podíamos deixar passar porque “era só para ir ao Centro de Saúde” ou “o Modelo é já ali”. E, de facto, o Centro de Saúde e o Modelo eram já ali, mas os trabalhos que realizávamos no cruzamento e a estratégia de segurança que adoptáramos impediam o fluxo de tráfego naquele sentido. Mais do que acompanhar o trabalho, servíamos de polícias sinaleiros e informávamos os condutores que seguissem no sentido sul-norte e ali quisessem virar para oeste da grande volta que tinham de dar.

A não ser, claro, que pertencessem à comitiva de figuras de estado que se deslocava, para uma solene cerimónia, às instalações de uma fábrica daquele concelho onde iria começar a ser produzida a viatura blindada sucessora da famosa Chaimite. Tínhamos sido avisados com antecedência de que alguns ministros, incluindo o Primeiro, passariam pela obra: deveríamos deixar passar os dispendiosos carros pretos de vidros fumados com altas patentes militares fardadas ou senhores de fato e gravata lá dentro. Por isso, as pessoas que não iam fardadas ou de fato nem conduziam dispendiosos carros pretos, vendo os carros da comitiva a virar à esquerda no cruzamento, coisa que lhes estava vedada, indignavam-se e barafustavam connosco porque, na sua opinião, o colete e capacete que usávamos nos tornavam responsáveis. Frases como “Isto só neste país” e “Estamos mesmo no terceiro mundo”, devidamente coloridas com insultos e palavrões, foram o prato do dia. Foi sem dúvida o dia em que mais nomes me chamaram, e eu tenho uma data de alcunhas.


Tamanrasset estava impossível no dia em que Abdelaziz Bouteflika, o presidente da Argélia, a veio visitar. A avenida que recebe quem entra na cidade vindo do sul estava barrada pela polícia, que indicava a única alternativa possível de circulação: virar à direita e entrar num beco de terra batida. Foi o que tive que fazer quando regressava da obra rumo ao estaleiro de Tamanrasset, percurso que obriga a atravessar completamente a cidade. O beco curvava à esquerda e conduzia novamente a uma rua alcatroada, que estava também fechada por polícias. As luvas brancas dos agentes apontaram-me o caminho a seguir, que era igualmente em terra batida: um beco que seguia em frente no outro lado da rua. Esta cena repetiu-se várias vezes.

Em Tamanrasset, apenas as artérias principais estão alcatroadas, e é por essas que costumamos andar. As ruas secundárias são todas muito parecidas: têm piso de terra, são ladeadas por paredes castanhas e cinzentas sem pintura e levam apenas a bairros residenciais que conheço mal mas que se ligam sempre entre si. Ao ser obrigado a enveredar pelos becos, depressa me perdi. Sempre que encontrava uma rua pavimentada, era obrigado a sair pela polícia, que tinha invadido a cidade por completo. Quando me fartei de procurar caminhos possíveis, comecei a perguntar aos polícias por onde devia ir para chegar ao sítio que queria. Nenhum dos que abordei me soube responder, porque eram todos de outras cidades e era a primeira vez que vinham a Tamanrasset. Em “missão”, diziam, usando o termo argelino que designa a deslocação para outra cidade em trabalho.

Tive mesmo de sair da cidade e circundá-la por fora, coisa que o terreno que rodeia Tamanrasset permite por ser plano e maioritariamente de areia e terra. Demorei uma hora para chegar de uma ponta à outra da cidade, o que normalmente se faz em cinco minutos. A cidade tinha parado: a maioria das lojas estava fechada e o trânsito não existia. As ruas não estavam desertas porque alguns cidadãos tinham ido ver o presidente a fazer as suas visitas e inaugurações, mas a maior parte das pessoas que se viam na rua era mesmo constituída pela força policial. O presidente esteve em vários pontos da cidade e inaugurou as obras de maior destaque, que ainda não estavam acabadas. Omar, o engenheiro, explicou-me mais tarde que as obras na Argélia são inauguradas várias vezes antes de estarem concluídas por um ministro – ou presidente, neste caso – de cada vez. Enquanto me contava isto, sorria e abanava a cabeça em desaprovação.

Lembrei-me várias vezes daquele dia na obra da Via Rápida do Barreiro em que era eu a informar dos cortes de trânsito e a deixar passar as figuras de estado. O Primeiro-Ministro nunca chegou a aparecer, mas entretanto já se produziu e apresentou ao público o Pandur II, o novo carro blindado de fabrico português.

Por norma, desde que conheci a Argélia e o eixo Tamanrasset-Niger, não gosto que digam que Portugal é um país do terceiro mundo, nem permito que o façam à minha frente sem um comentário de resposta. Mas a realidade é que de vez em quando encontro parecenças, sobretudo no que diz respeito à noção desfocada que os governos destes países têm do poder. Contudo, e por saber que no nosso país muito se faz de bom apesar disso, Portugal não deixa de ser, para mim, um paraíso. “O paraíso triste”, como lhe chamou Saint-Exupéry, e eu estou inclinado a concordar.

1 comentário:

maria pragana disse...

Se não há mais parecenças, é porque o nosso país pertence, não ao terceiro mundo, que isso é muito banal, mas ao trigésimo, que além do terceiro ostenta orgulhosamente um zero à frente!
;P