23/07/2007

A imunização

No último dia de trabalho antes de entrar em férias, a médica libertava tanto vapor que parecia estar prestes a explodir devido a pressão excessiva. Quando entrámos no consultório, ela discutia termos técnicos de medicina pelo telefone. Tinha uma cara permanentemente zangada e cansada. Apesar de educada, era assertiva, directa e ácida. Por ordem de um dedo seu, sentámo-nos a uma mesa na extremidade da sala e aguardámos o fim do telefonema.

Na sala tinham entrado comigo dois homens, um rapaz e uma rapariga. Os dois homens tinham ar de estar na casa dos quarenta e os jovens tinham mais ou menos a minha idade. Sussurravam um ao outro e davam as mãos: eram um casal. Quando a médica pousou o telefone, disse:

- Peço desculpa mas hoje está a ser um dia infernal, estou mesmo a precisar de férias - com um gesto brusco tirou os óculos, que ficaram suspensos à volta pescoço por meio de um fio - Vocês vão para onde e fazer o quê?

Os dois quarentões responderam Angola em trabalho, o casal México em lua-de-mel, eu Argélia em trabalho também. Ao ouvir Angola, a médica franziu o sobrolho:

- Vocês são os únicos daqui que vão ter que fazer a prevenção da malária. Não há vacina, a prevenção é tomar um comprimido uma vez por semana ao jantar. Eu sei que vocês vão chegar a Angola e toda a gente, incluindo os médicos, vos vai dizer para deixarem de tomar o comprimido porque faz mal ao fígado, a isto e àquilo, só porque o comprimido causa enjôo. Ora, eu já recebi três faxes da Organização Mundial da Saúde esta semana devido a terem aparecido casos de malária em Portugal, e as vítimas fizeram a consulta do viajante neste distrito - adoptou um ar ainda mais zangado e subiu o tom de voz - Ora, já toda a gente diz que eu passo a consulta a ralhar, mas pelos vistos não chega: ainda há pouco estive ao telefone com um médico angolano e discutimos por causa disto. Se em Angola eles não concordam com o comprimido é lá com eles, é por isso que eles têm o país que têm, mas o comprimido é perfeitamente seguro excepto se tiverem deficiências hepáticas... Por isso é que eles dizem que faz mal ao fígado. Mas é uma gaita de um comprimido, poça, a malária mata! Por isso livrem-se de deixarem de tomar o comprimido! Onde é que já se viu isto, casos de malária em Portugal!

Os quarentões acenavam "Claro" nas raras pausas do discurso da médica. Um deles tinha estado a falar lá fora com outro quarentão, seu conhecido, que estivera em Moçambique e tinha deixado de tomar o dito comprimido. A conversa deles tinha sido precisamente a que a médica estava a prever: o quarentão de Moçambique aconselhara o quarentão de Angola a não tomar o comprimido da malária. Mas agora, mais iluminado, este quarentão de Angola fazia "Claro" com a boca, ombros e cabeça, ao ouvir a médica repetir:

- Por amor de Deus, tomem a gaita do comprimido!

Depois, falando para todo o grupo, falou um grande bocado sobre a medicação de que nos deveríamos fazer acompanhar: antibióticos, antipiréticos, antidiarreicos, repelentes de insectos, protector solar, etc. Enquanto nos industriávamos em medicina de bolso, um carro começou a apitar furioso na rua. Diante do consultório, num estacionamento improvisado em passeio de terra batida, um carro estava trancado. A médica:

- É sempre a mesma história. Aquele carro é de algum de vocês?

Não era. E como não era, ela continuou o seu sermão sobre fruta bem lavada, água sempre engarrafada, saladas com muito cuidado e gelo nunca. Intercalou-o com exemplos dramáticos de turistas que apanharam uma diarreia logo no primeiro dia de férias e não chegaram a sair do quarto durante toda a semana, das más condições de higiene que ela tinha visto quando trabalhou em África, e de todas as desvantagens de agir de forma diferente à que ela ordenava, como doenças e morte. Depois, enquanto as buzinadelas vindas da rua se tornavam cada vez mais insistentes, aconselhou ainda:

- E claro, relações sexuais sempre, sempre, sempre com preservativo. E mesmo assim, vejam se vale a pena - colocou novamente os óculos no nariz, olhou para os seus papéis e começou a passar-nos as receitas para as vacinas. - Vocês para o México tomam estas, é relativamente pacífico. Vocês para Angola têm que tomar isto e, já sabem, fazer a prevenção da malária. E tu, meu filho, vais ter de tomar estas duas e ter de ter muito cuidado que as condições de higiene deles são de bradar aos céus.

Hepatite A e febre tifóide. Angola teria sido pior. Nisto, entra uma colega da médica na sala:

- A polícia está lá fora a multar carros de empreitada. Algum deles é dos senhores?

Não. E começámos a sair do consultório à vez para ir à farmácia aviar a receita e regressar ali para a pica, que foi extremamente simples: hepatite A no braço esquerdo, febre tifóide no direito e à saída choros de crianças e velhos a tossir. Quando cheguei à rua, depois de tudo terminado, os agentes da polícia içavam um carro para cima do reboque.

2 comentários:

j m disse...

Aí está: uma consulta rápida, em grupo e sem a médica vos perguntar se têm algum problema ou vos tocar. Qualquer dia temos consultas em esplanadas e no fim paga-se o café e os 75€!

Anónimo disse...

Portugal no seu melhor,
palavras para que...