Por isso é que, ao olhar para as riscas de todas as cores no bazane do Sidi Mohamed que tanto me alegram – e dando um sentido concreto a mais um lugar-comum –, percebo finalmente onde está o pote de ouro no fim do arco-íris.
30/11/2007
Sidi Mohamed
Por isso é que, ao olhar para as riscas de todas as cores no bazane do Sidi Mohamed que tanto me alegram – e dando um sentido concreto a mais um lugar-comum –, percebo finalmente onde está o pote de ouro no fim do arco-íris.
Chicotadas psicológicas
- Não sabias? Já faz um mês... – observou o topógrafo.
- Um mês? Faz é dois meses! – corrigiu o director.
- E o Jorge Costa também saiu do Braga há para aí uma semana – voltou o topógrafo.
- Nã, três semanas! – disse o director.
- Eh pá, hoje não acerto uma...
- É o que dá, estar enfiado aqui no deserto... - observou o do cilindro.
E viraram-se novamente todos para a televisão.
29/11/2007
Dez
O velhote percorria a sua obra e, entre as instruções que ia dando aos seus trabalhadores, contava-me por alto a história da sua vida. É um homem simpático que se apresenta como Bob, diminutivo de Boubakeur. Apesar de a sua aparência o denunciar como argelino, a sua postura confere-lhe pinta de europeu: estudou na Argélia, doutorou-se em Londres, viajou um bocado por todo o mundo, criou família em Oran e uma pequena empresa que o trouxe até Tamanrasset, até nós. Caminha ao meu lado, com os seus óculos escuros e o seu lenço à volta do pescoço, e fuma em curtos bafos silenciosos. Apercebo-me de que o Bob diz aos trabalhadores para se esmerarem e se despacharem por minha causa: são nossos subempreiteiros. Fala-lhes em árabe e, para o fazer ver que eu o percebo, pergunto-lhe porque é que ele lhes está a dizer isso. Revela-me que usa o facto de eu estar ali para os fazer levantar o rabo do selim. Diz-me ainda que nunca se deve dizer que o trabalho de um subalterno é bom, mesmo que o seja.
- É um truque de relações humanas - diz ele - Desta maneira, o trabalhador não se sente indispensável e tenta sempre fazer melhor.
Replico:
- Mas, quando trabalhas para outra pessoa, que mal há em elogiarem o teu trabalho de vez em quando?
- Vou contar-te uma coisa que um professor de matemática uma vez me disse. Quando lhe perguntaram porque não dava nota vinte a ninguém, ele respondeu: "Vinte é para o bom Deus, dezanove é para mim, que sou professor, e dezoito é para o Bob."
Percebi a lição. E o velho pôs um grande sorriso antes de dizer que era barra a matemática.
- É um truque de relações humanas - diz ele - Desta maneira, o trabalhador não se sente indispensável e tenta sempre fazer melhor.
Replico:
- Mas, quando trabalhas para outra pessoa, que mal há em elogiarem o teu trabalho de vez em quando?
- Vou contar-te uma coisa que um professor de matemática uma vez me disse. Quando lhe perguntaram porque não dava nota vinte a ninguém, ele respondeu: "Vinte é para o bom Deus, dezanove é para mim, que sou professor, e dezoito é para o Bob."
Percebi a lição. E o velho pôs um grande sorriso antes de dizer que era barra a matemática.
10/11/2007
O mercado
Toda a gente sabe que, quando se compra uma coisa num mercado, está-se na realidade a comprar duas: o artigo em si e o seu cheiro. O aroma das coisas é sempre mais intenso nesses sítios e povoa toda a atmosfera e envolve as lojas, quiosques e balcões, pelo que o dinheiro que se paga pelo que quer que seja que se compre, paga também o cheiro.
O mercado de Tamanrasset não é excepção: num grande terreno de terra batida e lancis mal amanhados, as lojas foram feitas em tendas que formam pequenas ruas e quarteirões de pano. Vende-se de tudo, e mesmo os artigos mais correntes que não dispõem da classificação eufemística de 'artesanato' são de qualidade duvidosa: perfumes, tapetes, tabaco, isqueiros, roupa, calçado, relógios, óculos de sol, brinquedos, produtos de higiene, alimentos. A falsificação de marcas é tanta e tão evidente que leva o visitante a interrogar-se se haverá alguma coisa genuína ali. A resposta depressa lhe chega ao nariz: o aroma de todo o comércio e mesmo das centenas de pessoas que falam alto, cozinham nas ruas e abandonam a loja sem risco de roubos mistura-se no ar e vai conduzindo o freguês por entre as lojas de paredes de tecido, para descobrir que, afinal, não existem apenas perfumes mas sim mil perfumes, não existem apenas tapetes mas sim mil tapetes, não existem apenas relógios, óculos, pulseiras, mas sim mil jóias que, não sendo de ouro ou pedras preciosas (abre-te Sésamo), possuem o mesmo brilho de um tesouro. Semeado em bancadas de madeira e tapetes numa esperança de que amadureçam na vontade de um comprador e ao alcance de um punhado de dinares.
Por isso, quando alguém vai comprar algo tão simples como um maço de cigarros, mesmo que o tabaco seja fracote, faz sempre bom negócio. O preço também nunca é elevado por aí além e existe sempre uma certeza de que os aromas, esses, não carecem de marca registada.
05/11/2007
Wrong kind of blues
Os pretos do Niger e do Mali que vão buscar pedras às montanhas para construírem muros de gabiões são mão-de-obra barata para as empresas argelinas. Alguns nem recebem dinheiro: trabalham apenas para comer. Vivem em tendas improvisadas no meio do deserto por toda a duração da sua obra e instalam-se o mais confortavelmente possível. Fabricam cabanas com tábuas e plástico para dormirem, halteres com varões de aço e cimento para se exercitarem, e até guitarras com paus, latas e arames. Alguns, enquanto atiram pedras de um lado para o outro, cantam músicas melancólicas com letras incompreensíveis. As suas músicas, em particular, são o que mais me emociona. Sabe-se lá se são alegres ou tristes, de onde vêm, o que querem dizer, quem as compôs. Quando não há vento e o deserto está em silêncio, as suas vozes enchem o ar, o sítio ganha a banda sonora que se lhe adequa e surge uma atmosfera confortável, como se estar aqui começasse a fazer sentido: da mesma forma que nos filmes a música complementa a acção do ecrã.
É por isso que se ao passar perto dos muros e eles estiverem a cantar, aproximo-me muito devagar para que não reparem que cheguei.
Ao subir para a carrinha para ir fazer um trabalho a um quilómetro dali, o Mustapha, um servente preguiçoso, aponta para o rádio e pede-me entusiasmado:
- Ali Farka, Ali Farka!
Porque já tinha andado antes na carrinha comigo.
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