17/12/2007

Moula-moula

Omar, o engenheiro argelino, aponta-me um pássaro que passa a voar à frente da carrinha onde seguimos e diz que avistar esta ave é sinal de boa sorte. Chama-se 'moula-moula'. Parece uma andorinha com uma mancha branca na cabeça e costuma andar por sítios onde há água. Os tuaregues e os viajantes do deserto em geral sabem que, se virem um pássaro destes, é porque existe água nas imediações. Segundo o Omar, é um animal simpático que se aproxima de nós desde que, claro, estejamos quietos.

Os camiões-cisterna que transportam água para a obra são verdadeiros destroços de guerra. Ivecos, Berliets, MANs com trinta anos ou mais, decanos das pistas, enchem o tanque de água num poço situado a trinta quilómetros de Tamanrasset e esvaziam-no na obra, a cinquenta quilómetros desse poço. Com o avanço da obra, esta distância tende a aumentar muito, o que levanta algumas questões sobre o desempenho destes veículos no futuro. Quase todos se deslocam a passo de caracol, muitos apresentam sinais de velhice e ferrugem irreparáveis e alguns demoram vários minutos até conseguir engatar a marcha-atrás. Uma boa parte deles tem furos na cisterna e deixam rastos de água por onde passam: os furos são pequenos o suficiente para a água chegar praticamente toda ao destino mas grandes o suficiente para se tornarem caricatos. É vulgar avariarem, condenando os motoristas a passarem noites no deserto. Porém, estes já estão habituados a esses contratempos e fazem-se acompanhar de água e comida, que penduram no exterior do camião. A água viaja em odres – peles de cabritos há muito digeridos – suspensos na lateral da viatura para conservar a frescura, e a comida consiste, em parte, em pedaços de carne pendurados na parte da frente da cisterna. É, eufemisticamente, prático.

Os motoristas convivem com as avarias com a naturalidade com que as pessoas de vida dura encaram as dificuldades. Conhecem as manias ao camião e tentam reparar a avaria com as ferramentas que trazem. Se não conseguirem, mandam o companheiro pedir boleia aos carros que passam e ir à cidade buscar ajuda: é por isso que viajam sempre acompanhados de um ou mais motoristas.

A água, muito necessária aos trabalhos de terraplenagem, é um dos problemas mais graves com que lidamos. E qualquer um de nós cedo se apercebeu de que não podíamos contar com aquilo a que estávamos habituados em Portugal. Em Tamanrasset não é fácil arranjar camiões decentes, mas há já alguns meses que trabalhamos com estes e, mal ou bem, a água lá vai chegando à obra. Às vezes mais mal que bem, mas não há problema: também nós encaramos com naturalidade – aquela com que às vezes se devem encarar as dificuldades – o facto de sermos servidos por estes camiões. Têm décadas de pistas e deserto no lombo, já viveram mais vidas e sofreram mais mortes do que qualquer pessoa e, se virmos bem, nem toda a gente tem o privilégio de trabalhar com verdadeiras relíquias viajantes que, de tão selvagens, até requerem dois ou três homens para as domar.

O pássaro preto aproxima-se de mim aos saltos. Pára a uns três metros de mim e fica a olhar-me de lado. Fico quieto a ver o que ele faz, e o animal aproxima-se cautelosamente dos meus pés para beber a água de umas pequenas poças criadas pelas fugas do tanque de um camião.
- Olá passarito, estás bom?
A ave, ao beberricar saltitando, parecia concordar que os camiões não são, de facto, grande pistola.

1 comentário:

Anónimo disse...

Sr Eng. que é feito de si?!... Para quando a actualização do blogue? Temos saudades suas e da sua escrita... Não deixe de nos presentear com as suas histórias e estórias...