08/12/2007

As flores lilases

Numa rua qualquer de Tamanrasset, dois miúdos, um rapaz e uma rapariga com não mais de três anos, gatinham pelo meio do lixo à procura de algo para comer. Estão praticamente nus e exibem a magreza de quem passa fome a sério. Às tantas, o rapaz sente-se mal e vomita. A menina avança na sua direcção e começa a comer o que ele deitou para fora.

Na televisão estava a passar o festival Eurovisão Júnior, no qual crianças de vários países interpretavam canções acompanhadas de coreografias, apresentadas por um homem louro nos seus trintas vestido com um blazer às flores em tons lilases. Os portugueses assistiam à retrospectiva das actuações dos vários países que antecedia a votação final. Crianças sorridentes de trajes e penteados extravagantes cantavam, dançavam, saltavam, aplaudiam e atribuíam pontos numa amálgama de luz e cor que, segundo era propagandeado de tempos a tempos, era proporcionada em parceria com a Unicef numa iniciativa de angariar fundos para combater a miséria nos países do terceiro mundo. De facto, a imagem da caixinha mágica por vezes dividia-se ao meio para exibir, numa das metades, o festival de música e, na outra, imagens de fome e crianças magras oriundas de um país qualquer que ninguém especificou. Nenhum locutor ou voz-off comentava as imagens de miséria: simplesmente eram lá colocadas como parte de uma edição de imagem definida por um realizador invisível, talvez numa tentativa de sublinhar a mensagem de caridade. Passados alguns segundos, o monopólio do ecrã era devolvido ao apresentador florido e às saltitantes crianças europeias.

Eu estava na sala a assistir ao festival e interrogava-me se mais alguém se apercebia do que se estava a passar. Sempre fui céptico em relação a grandes festas de angariação de fundos para uma iniciativa caritativa qualquer, não por acreditar que o dinheiro não chegue ao destino para que é pedido, mas sim por considerar que a caridade não deve ser feita assim. E as vestimentas e cabelos das crianças pareciam dar-me razão a cada saltinho.

Talvez seja por pensar assim que fiquei surpreendido ao não ficar minimamente aborrecido quando a Bielorússia ganhou e Portugal ficou no fundo da tabela. Nada aborrecido mesmo. Aliás, deve ser tudo impressão minha: de certeza que o dinheiro será entregue, de certeza que a iniciativa terá bons frutos, de certeza que a canção da Bielorússia era mesmo boa, de certeza que as crianças europeias serão felicitadas pela sua boa prestação enquanto as crianças africanas comem o arroz sorrindo, de certeza que toda a gente ficará contente com o resultado, de certeza que o realizador invisível é um génio que nos faz um favor quando nos exibe a miséria durante poucos segundos e no resto do tempo mostra luzes, cores, crianças sorridentes, apresentadores animados e flores lilases.

1 comentário:

Anónimo disse...

Onde é que eu ja ouvi esta história do miudo a vomitar, e outra criança a comer o que o miudo acabou de vomitar... realmente isto é que é miséria...
Apesar de tudo, continuo a achar que Portugal, a "cauda" da Europa, está num "cantinho do céu", onde, apesar de todos os problemas...
Devíamos agradecer o que temos, (mesmo que seja pouco) e não quando passamos por alguma experiência "zen", ou vemos a (verdadeira) miséria...