10/12/2007

In-Guezzam

A vila – ou aldeia? – de In-Guezzam, no extremo sul da Argélia e a quatrocentos quilómetros de Tamanrasset, é para todos os efeitos o fim da linha. Da nossa linha. Pelo menos, quase: Apenas uma dezena de quilómetros – que serão construídos por nós, portugueses – a separa da fronteira com o Niger. Para lá, estão sítios que posso apenas considerar como sendo míticos e de fantasia, devido ao que se ouve dizer deles e a nunca os ter visto. Ao fim de uns tempos nesta região, começam a conhecer-se histórias de miséria, contrabando, crimes e emigração arriscada. Tudo camuflado e protegido pela areia, pelos montes de pedra e pelas grandes distâncias.

A zona onde há alguma água e verdura, uma rua principal com candeeiros e terra ladeada por casas castanhas que se espraiam em seu redor, lojas de portas abertas a oferecer pão, ferramentas e roupa – a escuridão dos seus interiores sugere-as como frescas, mais pela opressão do calor cá fora do que propriamente pelos seus atributos térmicos –, serviços simples como correios, postos de polícia e bombas de combustível, doze meses de calor por ano e areia por todo o lado – mesmo no vento –, é In-Guezzam. Na rua principal agrupam-se polícias de fronteira, miúdos saídos da escola e automóveis que esperam à porta das bombas que chegue combustível do norte. À volta da localidade pastam cabras guardadas por tuaregues preguiçosos, o que me leva a perguntar ao Sidi Mohamed – que faz parte da nossa pequena comitiva de estudo da subempreitada que ali vamos fazer – o que é que elas comem. Diz ele que este gado é criado do outro lado da fronteira, onde há vegetação, e só está aqui para ser vendido. Dezenas de cabeças.

À hora de almoço, já a comitiva de estudo tinha acabado o estudo, pelo que restava apenas a comitiva. Estacionámos às portas da vila e instalámo-nos num tapete estendido sobre a areia. O Sidi Mohamed informou-nos que a refeição ficaria por sua conta, mandou alguém à cidade chamar um cozinheiro e afastou-se para ir negociar um cabrito com os tuaregues que pastoreavam por ali. É Dezembro mas está calor: desapertam-se camisas, abanam-se t-shirts e viram-se caras na direcção da brisa. Para trás de nós está a vila, para a nossa frente está o areal interminável do qual emergem cabeços arredondados de pedra escura. Do rádio das carrinhas sai música que, misturada com o calor e a brisa, lança a languidez de um verão na atmosfera.

Quando o Sidi Mohamed regressa ao pé de nós com o cabrito, já o cozinheiro está à espera. Numa questão de minutos, o cabrito é degolado e desmanchado na areia. É grelhado num pequeno braseiro que foi ardendo entretanto e ao fim de uma ou duas horas é-nos oferecido numa terrina acompanhado de pimentos e cebola. Até gosto de cabrito, mas neste não toquei. Comi uns pedaços de frango – esse não morrera à minha frente – que tínhamos trazido de Tamanrasset.

Antes de nos fazermos ao caminho ainda ficámos ali um bocado. Parecia mesmo verão. Estávamos numa praia gigante, que tinha de sobra em areia o que lhe faltava em mar. Observávamos os tuaregues que entretanto carregavam o resto do gado caprino para um camião. Aproxima-se uma grande festa islâmica, em que a tradição manda comprar um cabrito e comê-lo com a família: vão conseguir vender todas as cabeças. Quando partimos, ao início da tarde, In-Guezzam está sossegada atrás de nós. Não há grande trânsito nem se vê muita gente na rua. Se calhar, penso eu, quase toda a actividade que traz vida a esta vila é feita fora dela. No Niger e em Tamanrasset. É que, apesar de ser um pardieiro árido e desolador, In-Guezzam tem uma pequena mas importante imagem de limite quimérico entre um nada e um tudo existentes em ambos os lados, ou não fosse uma localidade fronteiriça: para nós e para o cabrito é o fim da linha, mas para muita gente é apenas o início. Aliás: o meio.

Passados vários dias, durante uma viagem para a obra, pergunto ao Sidi Mohamed o que quer dizer ‘In-Guezzam’. No seu francês de fraca qualidade, responde-me que o nome da localidade se refere ao facto de, há muito tempo atrás, se degolarem muitas pessoas naquela zona. Passa-me pela mente um comentário sobre a degolação de caprinos que não consigo travar antes de me sair da boca.

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