17/09/2007

Aboukh e as coisas importantes

Cheguei ao refeitório para jantar. O ajudante de cozinha, que mais tarde vim a saber chamar-se Aboukh, indicou-me os vários pratos que tínhamos à disposição nesse dia, dizendo os nomes dos alimentos em português e acompanhando-os com o dedo:
- Frango, peixe, batatas, arroz, merda.
Nessa altura, através deste rapaz árabe, comecei a aperceber-me de que, por mais que as nossas culturas tenham diferenças, estas serão sempre superadas pelas semelhanças humanas que partilhamos: quanto mais não seja, a piada em aprender palavrões noutras línguas.

Sexta-feira – de um modo geral porque nem sempre – é o dia de descanso, o que significa que a noite de quinta-feira é mais comprida que as outras. O jantar prolonga-se ao ritmo da conversa, a conversa prolonga-se ao ritmo da cerveja e a atmosfera é indubitavelmente mais leve. Às vezes, há enchidos ou bacalhau, duas coisas que não existem em Tamanrasset e mesmo em Argel não se encontram em qualquer lado. A presença desse tipo de víveres aqui deve-se a alguns portugueses que, quando regressam das férias em Portugal, trazem a mala cheia deles. Depois, os patrícios juntam-se à volta de uma mesa e come-se do que houver. Numa dessas vezes – aquela em que, desde que cá estou, se juntou mais gente à volta da mesa – o Aboukh estava a trabalhar na cozinha. Servindo-nos as cervejas, imitou os trejeitos de alguns portugueses numa mímica desajeitada acompanhada de palavrões em português. Fez rir toda a gente.

O Aboukh é muito apreciado pelos portugueses devido ao seu bom humor constante. Não é preciso falar em francês com ele: percebe praticamente tudo o que se lhe diz em português, incluindo palavrões e insultos. E quando o insultamos em árabe, ele insulta-nos em português: é simples. Por vezes, quando o tentamos convencer a comer enchidos de porco e a beber álcool, ele sorri, aponta o dedo para o céu e chama-nos nomes. Sem o saber, tem uma forma elegante de nos fazer prestar atenção aos valores dos árabes.

Podia dizer que gosto do Aboukh por ter simpatia e bom humor, mas estaria a mentir. A verdade é que gosto do Aboukh por ter uma família de treze pessoas que vive do seu ordenado e, agora sim, simpatia e bom humor.

Dizia eu há bocado que, por mais que as nossas culturas tenham diferenças, estas serão sempre superadas pelas semelhanças humanas que partilhamos. Toda a gente sabe isto, e toda a gente esquece. Mas graças ao Aboukh, não só compreendi para sempre que há, de facto, valores universais, como também já sei dizer ‘merda’ em árabe. É ‘khra’.

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