30/09/2007

A modorra e os soldados

O organismo do estado onde eu precisava de ir abre às nove da manhã durante o Ramadão. Cheguei dez minutos antes e, como é óbvio, tive de esperar quase até às dez para falar com o senhor que ia assinar os papéis que eu levava. Decidi esperar na rua e observar.

O facto de serem nove da manhã não costuma intimidar muito o sol, porque a essa hora já sou obrigado a usar manga curta. O calorzinho agradável que se fazia sentir e a minha modorra matinal encostaram-me à parede da esquina e fizeram-me espreguiçar. A rua ainda não estava muito movimentada, mas também raramente o está. Passavam poucos veículos, o que não significa que o trânsito é seguro: Peugeots 504 e 505 a caírem de podres, carrinhas Toyota, jipes variados, táxis (mais Peugeots), motas, bicicletas e dromedários atropelam-se numa espécie de desafio para descobrir quem conduz pior. Diria que também é da modorra, porque apesar de o tráfego ser desordenado até o sol se pôr, neste sítio é fácil ter-se modorra o dia inteiro. Enfim, só neste dia é que me apercebi do quão curioso é haver às vezes tão poucos carros na rua e mesmo assim ser perigoso andar na estrada.

Mas dizia eu que Peugeots, Toyotas e assim. E também pessoas. Algumas a irem para o trabalho, outras, mais jovens, vestidas de soldado a entrarem num quartel próximo, outras, mais jovens ainda, a irem para a escola. Passa por mim um grupo de miúdos vestidos com batas brancas, como se fossem pequenos médicos de mochila às costas. As mulheres, com a cabeça tapada. Os tuaregues também. Às vezes, as pessoas que passam mais perto de mim cumprimentam-me. "Salaam Alaykum". Nenhuma destas pessoas corre para lado nenhum: percebo a minha ingenuidade em ter vindo dez minutos mais cedo e a sorte que tenho em ser tão ingénuo assim.

O sol bate numa das paredes dos edifícios, duas no máximo, e não me deixa ter certezas acerca da sua cor: avermelhado ou acastanhado? Seja como for, é a cor dominante nas casas de Tamanrasset, creio eu que para não destoar. Troco a esquina por uma árvore grande e amodorro-me junto ao tronco pintado de branco na base, como todos os outros troncos de árvores grandes.

Em suma: os Peugeots, Toyotas, soldados e médicos pequeninos que talvez curem doenças pequeninas também, todos dourados pelo sol e acastanhados pelos edifícios. É da luz, creio, e do calor também. É uma imagem calma e tranquila, graças à cor e às pessoas: ninguém tem pressa, como se toda a gente estivesse a esperar comigo pelo senhor que assina papéis. Como se toda a gente tivesse a modorra que eu tenho, os soldados, os táxis e os dromedários. Por isso, movido pela simples cortesia e grato por me fazerem companhia enquanto espero, cumprimento também toda a gente que passa por mim.

Há imensos militares em Tamanrasset. É uma cidade muito militarizada porque serve de base para a vigilância e protecção das fronteiras com o Niger e com o Mali, e de toda região sul em geral: uma área tão vasta de areia e pedra que torna estranho - e interrogo-me acerca disso - o facto de a farda dos soldados ser em tons de verde.

3 comentários:

Anónimo disse...

Impressionante.... A escrita, o relato dos acontecimentos, a história vivida... Um fiel relato da cultura, histórias interessantes, uma excelente fluência de discurso... Fiquei maravilhada com o que li e desejo os maiores sucessos profissionais nesta aventura no deserto... Nunca deixe de escrever e atreva-se, quiça um dia, a publicar algo seu, não deixe de nos presentear com as suas histórias

Anónimo disse...

Mais uma vez os meus Parabens sr Eng/escritor! Fico deveras sensibilizado como consegue transmitir duma forma corrente ,que ate parece facil!? todas essas imagens e pormenores duma cidade a fluir, ou talvez parada?!... A luz,as pessoas, os carros , a paisagem, o ambiente, enfim a cultura dum povo!!!...força!! tou sempre a espera de mais...os maiores sucessos em todas as vertentes da sua vida!!...

Anónimo disse...

Só hoje é que me dignei a ler isto com calma! E gostei meu pequeno Lobo Antunes! Só a parte de dar "pancada" nos Peugeots é que enfim. É uma traição a uma marca que tanto e tão bem te serviu durante anos! Ou então não é nada disso e eu é que tenho o condão de falar de carros em toda e qualquer conversa onde meto o bedelho.
De resto, irei aguardar os próximos capítulos e, sempre que se justifique, transmitirei informação válida ao nosso fiel companheiro e amigo que acha que, e passo a citar, "isso dos bloques é uma merda e oh crlh!".

Despeço-me com um arriba, avanti Pop Dell'arte!
(não tem nexo mas também não é para ter)

[ ] Jonas

PS: Fiz alguns comments parvos a posts mais antigos.