29/09/2007

A aguardente

Assim de repente veio-me a vontade de escrever, eu que até estava a pensar escrever qualquer coisa amanhã, uma coisa assim gira sobre Tamanrasset, dessas que dão a conhecer um bocado desta realidade àqueles que não têm oportunidade de vir aqui ver como isto é e que a meu ver não perdem grande coisa porque isto não é nada de especial porque é um pardieiro, a não ser que venham uma semana para conhecer como o resto dos turistas europeus e isso chega porque não há muito mais para ver, paisagens e tal, mas ao fim de algum tempo cansa porque afinal de contas é o deserto e o deserto é famoso por ser grande e monótono e acaba por ser uma chatice ao fim de muito tempo.

Acho que me deu a vontade de escrever porque estava aqui na internet a falar para Portugal e para a vida que pus em pause (tuca) para vir para cá ganhar a vida e essas coisas que as pessoas crescidas fazem (agora já trabalho, sou crescido), e comecei a ouvir uma música que ouvia imenso quando trabalhava na margem sul do Tejo. Claro está que as memórias jorraram em catadupa sobre a minha cabeça pequenina e o resultado é a inundação deste texto, que não vou guardar em Word como os outros, que não irei reler, que será espontâneo, que irá destoar dos outros mas no fundo faz parte da experiência de estar déplacé aqui na Argélia e conviver vinte e quatro

A professora de língua portuguesa diz aos seus alunos:
- Num texto corrido, os números escrevem-se sempre por extenso.


horas por dia com a obra, com a cultura estranha que tanto deu a fazer a vários reis nossos, com o trabalho, com as saudades, com o calor (se vissem como estou agora), com a areia e o pó, com todas essas coisas que tornam o facto de estar no deserto numa coisa "gira".

A margem sul do Tejo é uma coisa onde eu vivia na altura em que o ministro Mário Lino decidiu dizer que a margem sul do Tejo era um deserto. Foi mais ou menos por essa altura que soube que viria para aqui, o que me rendeu comentários

- Vais sair de um deserto para ires para outro!

sem piada nenhuma. Quer dizer, na altura tinham piada mas agora deixaram de ter porque começo a ter saudades até da margem sul do Tejo.

No Lavradio, freguesia do concelho do Barreiro, existe um depósito gigante de gesso que forma um planalto com uma extensão enorme. Localmente, é conhecido como 'Montes da Lua', devido ao seu aspecto árido e inóspito. Cativa pela sua estranheza. Visitei os Montes da Lua várias vezes quando vivi por ali e pude ter uma perspectiva diferente do estuário do Tejo: vê-se o casario de Lisboa, o cristo-rei de Almada, a base aérea do Montijo, as pontes, a ilha do Rato, as fábricas do Barreiro. Das vezes que lá fui estava frio e um vento do caraças. Cativa, acreditem: é desolador, assustador, perturbador ver uma quantidade enorme de gesso mesmo à beira do nosso Tejo, mas cativa. Os U2, os Blasted Mechanism, o Cristiano Ronaldo e os actores do Filme da Treta pensam o mesmo, porque já lá fizeram sessões de fotografia-barra-filmagem.

Para mim os Montes da Lua eram o deserto da margem sul do Tejo e acho que gosto desse tipo de sítios em que uma pessoa se sente perdida e espantada. É isso: estava espantado. Gosto de coisas que ainda me espantam. Tamanrasset e o Saara espantam-me. Surpreendem-me. Já cá estou há quase dois meses e ainda há qualquer coisa que me surpreende, que estranho: acho isso fabuloso. Há qualquer coisa neste espanto que me faz ter vontade de conhecer e perceber os sítios, e é isso que me cativa. Isso acontece mais nos sítios feios e difíceis porque são esses que se têm que olhar com mais atenção para se compreender que todos os sítios têm o seu encanto. Atenção: eu disse encanto e não beleza.

Certa vez, em Lagos, estava à procura de um restaurante quando um rapaz com dois finos na mão me abordou em inglês oferecendo-me ajuda e uma das cervejas. Recusei a cerveja e aceitei a ajuda. Revelou-me a direcção para o restaurante que procurava e acompanhou-me. Chamava-se Jamie, tinha dezassete anos e era australiano. Estava a trabalhar em Lagos. Quando lhe perguntei porque razão um australiano tão novo tinha vindo para tão longe de casa, ele respondeu-me:
- Oh, but Lagos is the best, man!


Acho que serve tudo isto para dizer que tenho saudades de Portugal. Mais nada. Prometo que da próxima escrevo qualquer coisa gira sobre a Argélia, sobre Tamanrasset, sobre o deserto, qualquer coisa que contribua para dar a conhecer a vida aqui. Mas neste preciso momento - e se for necessário, apagarei este texto e negarei tudo -, só consigo escrever sobre o sítio onde estou.

6 comentários:

Unknown disse...

Ás x, é qdo menos se espera k tudo muda... Beijocas enormes J

Anónimo disse...

Apesar de ter a sensação que havia por aqui muita cerveja à mistura este foi um dos teus posts mais bem conseguidos (so far!).
N deve ser nada facil passar por tudo que estas a passar, especialmente pelas sudades! But I know that "You can do it!" ;)

Anónimo disse...

Anime-se Eng/escritor! escreva sempre, ainda q seja p desabafar, faz bem e ajuda!!...Nao deixe de falar dessas terras do outro mundo!... Tenho mto interesse em conhecer essas paragens e essas gentes! ninguem melhor para nos dar uma visao precisa de tudo isso. Gostaria de visitar como turista, claro!...coragem, mta força,tem tudo para dar certo e vai dar...sem duvida!pensamento positivo!
Escreva, escreva sempre!...

Anónimo disse...

O ar quente do deserto desenvolveu em si uma prosa fluente que eu admiro.
No entanto parece-me existir nela algum desencanto, talvez fruto de alguma saudadesita que começa a fazer mossa. Se for esse o caso siga o conselho deste velho ex-combatente, que na altura se mentalizou que o período mais difícil de suportar eram os primeiros vinte e quatro meses...
Um abraço daqui dos montes da lua e a propósito lembre-se, antes lunático que aluado.

Anónimo disse...

O que a águardente faz às pessoas... :) Mais do que dares a conhecer a Argelia, estas a demonstrar o que sentes e como te sentes num país estranho em comparação com o teu, E as saudades que tens de portugal... porque mesmo para um rapaz "crescido",é normal teres saudades do que gostas, e da vida que deixaste em Portugal... :) Pensa que é apenas mais um dos desafios (que vai acabar brevemente), de todos que vais encontrar pela vida fora...

Anónimo disse...

e finalmente as saudades...
há muito que anseio por este desabafo!
pela primeira vez, em dois meses, falas de saudade...como só nós portugueses, sentimos...
bj enorme da amiga archeo (com algumas saudades!)