Na construção de uma estrada, antes de se aplicar o vulgarmente chamado ‘alcatrão’, é costume aplicar-se uma camada de brita chamada ‘tout-venant’. Aqui, no sul da Argélia, não se aplica tout-venant mas sim ‘tuf’, um solo natural frequentemente encontrado nuns montes avermelhados no deserto. Depois de espalhado sobre a plataforma da estrada e regado, é compactado com cilindros. A compactação final, que deve obedecer a valores estipulados no projecto, é medida com um aparelho chamado gamadensímetro. Durante o funcionamento, este aparelho liberta radiações. Convém não se estar perto dele enquanto funciona, porque a presença de uma pessoa nas proximidades influencia os resultados e, segundo dizem alguns, as radiações libertadas podem provocar disfunções masculinas indesejadas. Pelo sim, pelo não, ninguém me apanha perto do gamadensímetro enquanto ele não terminar a leitura: no fundo, é um bocado como guardar o telemóvel no bolso de trás das calças.
Neste momento está a aplicar-se tuf. Periodicamente, um fiscal técnico de laboratório chamado Aissa vai até à obra para verificar com um gamadensímetro se a compactação está dentro dos valores devidos. Enquanto esperamos que o aparelho cuspa os resultados do ensaio, conversamos em francês. O tema mais frequente a seguir ao trabalho é a religião. Mais propriamente, as diferenças entre as nossas religiões. Como está a decorrer o Ramadão, este tema vem à baila mais vezes ainda.
O Aissa prepara o aparelho para o ensaio e eu aproveito a necessidade de me distanciar para ir até à carrinha buscar uma garrafa de água. Está a cinquenta metros de nós, perto do último ponto que analisámos. Caminho sobre o tuf compactado que se prolonga como uma passadeira até desaparecer em curva no cimo de um monte. Está um vento fortíssimo, que nos refresca ao mesmo tempo que nos enche de areia. De cada lado da estrada há colinas de areia e pedra a perder de vista onde pouca gente, incluindo os argelinos, se aventura. No cimo dos montes mais próximos voejam bandos de corvos que são atraídos pela água que misturamos no tuf: são silenciosos e não incomodam, mas saltam à vista por causa do contraste que fazem com a monotonia da paisagem. Chego à carrinha, pego na garrafa e regresso para junto do Aissa. Bebo um trago e ofereço-lhe água, sorrindo. Sei que ele vai recusar porque é Ramadão. Faz que não com o dedo e diz:
- Le Dieu.
Depois, pergunta-me se não faço Ramadão. Rio-me e respondo-lhe que não, dizendo que cada um de nós adora o mesmo deus de formas diferentes. O Aissa insiste na ideia de que eu devia fazer o Ramadão: segundo ele, quando morrermos, Deus irá ter em conta todas as rezas efectuadas e Ramadões cumpridos antes de nos decidir aptos para o Paraíso. Não sou religioso: talvez seja por isso que comentei que o Paraíso será ganho se agirmos em vida de acordo com certos valores, como a bondade, honestidade e honra, os três únicos valores que na altura consegui dizer em francês. O fiscal retorque que existe uma componente de veneração que não pode ser descurada. Algo que eu já sabia e que é responsável por eu não ser religioso. Não tenho paciência para missas, quanto mais passar um mês sem comer durante o dia.
O vento leva os corvos a pairar no ar sem se mexerem, levanta-me o cabelo e ameaça o boné do Aissa. Faço o Aissa notar que um deus bondoso não o obrigaria a estar ali ao calor com os lábios e os dentes cobertos de areia e pó trazidos pelo vento sem o deixar beber água, mas o homem objecta que o seu deus não o obriga a nada: os árabes só fazem o Ramadão se quiserem. A conversa estagna.
Examinamos o ecrã do gamadensímetro e encontramos um valor favorável, que o Aissa escreve numa folha de papel dobrada em oito. Pegamos no aparelho e avançamos mais cinquenta metros, indiferentes ao vento cada vez mais forte que já obrigou os corvos a pousar.
22/09/2007
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1 comentário:
Ia gostar de ver-te fazer Ramadão... :P
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