A minha viagem começa num Chevrolet Matiz de aluguer que dança (com dois pés esquerdos) quando atinge os 130km/h. Ainda está a chover, como na noite anterior, e assim continua durante todo o percurso na A1, durante Lisboa e durante o aeroporto, onde vários cartazes celebram a abertura do novíssimo Terminal 2: "se é para Portugal, há um novo terminal". Encontro-me com o meu chefe, o Jorge, no balcão do check-in. O Jorge é um homem alto, entroncado, com voz grossa, cabelo já meio grisalho e atitude desenrascada. Fazemos o check-in, tomamos café, conversamos, embarcamos, voamos, aterramos no aeroporto Charles de Gaulle em Paris: sem história.
Almoçamos duas fatias de pizza cada um e tomamos café tranquilamente, como se fôssemos portugueses. Com a conversa, atrasamo-nos para o embarque do avião para Argel, que parte em 25 minutos. À nossa frente há uma fila de mais de cem pessoas. O Jorge, sempre despachado, convence uma funcionária do aeroporto de que acabámos de chegar de Lisboa num voo que se atrasou e passamos à frente de toda a gente. Como se fôssemos portugueses. Depois de mais um voo sem história, que passo a dormir (finalmente, o sono!), aterramos em Argel.
À saída do aeroporto, sinto um bafo quente e húmido que me diz “estás em África”. Adoro calor. Um colega, o Gustavo, vem buscar-nos ao aeroporto de carro e, enquanto nos leva para a sede argelina da empresa, começa a discutir assuntos de trabalho com o Jorge. Indignam-se com as dificuldades de trabalhar neste país, como se fossem portugueses. Aproveitei para olhar para tudo, e esta curta viagem de uma dezena de quilómetros pelas ruas de Argel faz-me ter vontade de passar muito mais tempo nesta cidade. Esta cidade tem quase 4 milhões de habitantes e esse facto é bem visível na confusão que há por todo o lado a esta hora. A arquitectura dos edifícios corresponde ao que se espera encontrar num sítio destes, embora surpreenda sempre. Há imensos terrenos baldios ladeados por pequenos prédios de habitação ladeados por terrenos baldios. O trânsito é infernal e os automóveis argelinos estão em mau estado: o código da estrada não tem grande expressão neste local.
Estacionamos em frente à sede, que fica numa moradia improvisada para o efeito. A rua é estreita, as crianças brincam cá fora e os cães ladram nos quintais. Lá dentro, as salas e os quartos são escritórios completamente equipados. A construção é arcaica e simplista, como a maioria dos edifícios de Argel e de cidades grandes do norte de África. As portas e janelas estão escancaradas por causa do calor e deixam entrar a brisa, os gritos das crianças e os latidos dos cães. O Jorge e o Gustavo conversam num dos gabinetes e eu apresento-me a um outro colega, o Miguel. Ordena-me que o trate por tu e conta-me aspectos da sua vida de Portugal, como se fosse português. Ao fim de um bom bocado, suficientemente grande para já ser noite, e depois de eu me inteirar das principais questões argelinas da empresa com o Jorge e o Gustavo, o Miguel informa-os de que vai fazer o jantar para toda a gente no seu apartamento e que me vai levar para o ajudar. Obedeço com satisfação, porque quero ver um pouco mais de Argel. Entro no carro do Miguel, um Peugeot 407 que, a avaliar pelas mossas e riscos, já está bem habituado ao ritmo das estradas desta capital, tal como o condutor: conduz depressa, nunca cede prioridade, ultrapassa por qualquer espacinho. Ele sabe disso, e refere que não teve outro remédio senão habituar-se a conduzir assim, porque demorava tempos infinitos a chegar a qualquer lado quando conduzia como se fosse português. Só cá está há quatro meses mas já conhece os sítios e as pessoas, fala francês e arranha o árabe: entra num pequeno escritório que dá para a rua para tratar de papelada com um velhote argelino, compra fruta numa pequena mercearia de confiança e pára numa padaria de esquina para ir buscar o seu pão favorito.
Chegamos ao apartamento do Miguel, que é uma surpresa agradável por dentro. Bem mobilado, confortável, acolhedor e fresco. Começamos a cozinhar. A minha primeira tarefa como engenheiro civil na Argélia é picar cebola e alho para um refogado. Jantar: borrego. O Miguel avisa-me acerca da frequência com que comerei borrego, informa-me que quase todos os seus jantares são borrego e que, felizmente, gosta dessa carne. Eu, felizmente, também. Enquanto cozinhamos e ele me conta histórias sobre a sua vivência na Argélia, começamos a ouvir cânticos altíssimos vindos da rua. Mostro surpresa, mas o Miguel informa-me de que é uma mesquita próxima a convocar o povo para uma oração. Diz que no primeiro dia também se assustou com aquele barulho todo porque não sabia o que era, mas o que o assustou mais foi o atentado bombista que houve em Argel no primeiro dia da sua estadia aqui, em Abril. Eu já tinha lido sobre isso, mas é estranho conhecer alguém que sentiu o susto na pele, apesar de não ter sido afectado pela explosão. Agora tem mais uma história para contar, e conta-a com um sorriso divertido: gosto do Miguel.
Enquanto o borrego assa no forno, o Miguel vai até ao quarto telefonar à família e eu ponho-me na varanda a ver a cidade e as pessoas a sair da mesquita: algumas mulheres estão cobertas da cabeça aos pés, outras não. O norte da Argélia é já bastante ocidentalizado, mas no sul, para onde vou, as diferenças são enormes.
O Jorge e o Gustavo chegam, jantamos, conversamos, tomamos café. Saímos de casa mais uma vez atrasados para o voo, como se fôssemos portugueses. Prego a fundo até o aeroporto de voos domésticos, que fica ao lado do internacional. O balcão do check-in já está fechado, mas o Jorge utiliza novamente a sua estratégia de convencer os funcionários do aeroporto de que acabámos de chegar num voo internacional que se atrasou: funciona. Embarcamos no avião para Tamanrasset. Por pura sorte, a empresa reservou-me para este voo um lugar em primeira classe.
Durante o voo para Tamanrasset, que dura umas duas horas e meia, escrevo e a olho pela janela. Apesar de ter sido de noite, é o melhor voo do dia, e não só por ser em primeira classe. Ao levantar, vêem-se milhões de luzinhas, que se vão tornando mais raras à medida que se continua para sul. Ao fim de pouco tempo, as luzinhas resumem-se a grupos de seis, cinco, quatro, num infinito escuro debaixo de mim. Um écran à minha frente informa-me da posição geográfica do avião, actualizada a cada três segundos, por isso sei que ao passar Ghardaïa as luzes terminam de vez e o escuro vence. O avião zumbe no escuro, dando a sensação – qual sensação, a certeza absoluta – de que está parado no nada: escuro em todas as direcções.
Escuro em todas as direcções até que, ao fim de muito tempo, se vê ao longe, no solo, um clarão de inúmeras luzinhas: Tamanrasset. Aterrar em Tamanrasset de noite é indescritível: uma cidade no meio do nada, do escuro completo, de um deserto de areia e pedra que agora não se vê, uma cidade que se orgulha de vencer o deserto como o escuro venceu as luzinhas há bocado, desce-se e percebe-se como é o chão, é-se recebido com música árabe saída de uma coluna do aeroporto, observam-se as pessoas de turbante que fervilham no aeroporto às três da manhã, vêem-se as redondezas, conclui-se o calor que se vai passar, estranha-se tudo como se se fosse português.
No solo, conheço o Bruno, o colega que nos veio buscar ao aeroporto. Leva-nos para o estaleiro da obra por uma estrada que passa rente a Tamanrasset mas não me permite matar a curiosidade acerca desta cidade, nem por sombras. Nem me ralo com isso porque haverá tempo para ver muita coisa: mal me designam um quarto no estaleiro, adormeço finalmente como se fosse um bebé.