Acordo às cinco menos um quarto da manhã para estar cedo na frente de trabalho, horário fresco estipulado para Agosto. Bebo o resto de água de uma garrafa de plástico, que atiro para um canto qualquer para junto de outras garrafas vazias. Levanto-me, lavo-me, visto-me e saio para a rua. Ainda é noite cerrada, mas já está calor. Encontro o Vasco e alguns trabalhadores argelinos à porta da cantina, que está a abrir quando eu chego. Tomo o pequeno-almoço e pego em duas sandes e três garrafas de água para levar. Entramos nas carrinhas, saímos do estaleiro e seguimos para sul.
Atravessamos Tamanrasset, que a esta hora está deserta. A actividade diurna começará mais tarde. As ruas são nossas, não me confundo nas rotundas, não me desvio de Peugeots indomados, não abrando nas barreiras da polícia que estão montadas mas não têm agentes a controlar o tráfego. Chegamos à periferia da cidade, que é constituída por uma avenida comprida com candeeiros no separador central e ladeada por coisa nenhuma, apenas deserto. Depressa deixamos para trás o que resta da cidade: a avenida comprida dá lugar à Transsaharienne, que continua para sul, para onde vamos. O Vasco segue com os argelinos à minha frente, é fácil de o ver na noite escura devido à luz vermelha do farol traseiro. À medida que a estrada serpenteia por entre os montes, os seus faróis da frente iluminam as rochas que ladeiam a estrada. Assim seguimos umas dezenas de quilómetros por estrada com pavimento em bom estado. Ligo o ar condicionado da carrinha: são cinco e meia da manhã e já está imenso calor.
Ao fim de algum tempo, vejo à minha esquerda um clarão muito tímido no céu: é o sol que aparecerá daqui a algum tempo. O pavimento bom acaba onde estão as máquinas de uma empresa argelina que tratará de reabilitar este primeiro troço. Agora estão paradas, mas daqui a algumas horas começaram a trabalhar ao seu ritmo vagaroso. Desviamo-nos da estrada por uma pista que segue a leste do traçado principal. Como todas as pistas, é constituída apenas por rodados de veículos no solo, embora devido à proximidade de Tamanrasset esta pista esteja bem definida e seja fácil segui-la. As carrinhas levantam pó que demora muito a pousar, e seguem em frente por entre árvores raquíticas, arbustos e pedras. Mais à frente, regressamos à estrada principal. O clarão a leste foi-se tornando um pouco mais evidente, permitindo ver já algumas nuvens pequenas e escuras, ainda cheias de noite.
O pavimento da Transsaharienne nesta zona é velho e esburacado: vão-se conhecendo e evitando os buracos. As rochas que ladeavam a estrada e eram iluminadas pelos faróis do Vasco ainda há pouco começam a ser cada vez mais escassas, deixando adivinhar a planície mais à frente. Depois de mais umas dezenas de quilómetros, quando o pavimento acaba de vez e dá lugar à terra batida, já os faróis não iluminam quase nada devido à claridade que vem da esquerda. As nuvens que o céu da noite escondia deixam de ser segredo: são poucas, e as da esquerda assumem tons amarelados por baixo e acinzentados por cima, devido ao sol que já lhes bate por baixo. Um pouco acima do horizonte, existe uma zona no céu que, devido à areia no ar, fica mais clara que tudo o resto e consegue dizer-se com exactidão que é ali debaixo que o sol vai nascer. Abro um pouco a janela e sinto o calor cada vez maior. Fecho-a novamente por causa do pó que as carrinhas levantam.
Continuamos em frente, já de faróis desligados. A estrada de terra batida começa a ser descontínua, havendo pequenos troços onde já não existe nada. A Transsaharienne confunde-se com as várias pistas que ali seguem para sul, num vale povoado por algumas árvores pequenas. Ao fim de cerca de 70km chegamos ao início do troço que vamos reabilitar. Reparo que o Vasco abranda e abrando também, sem perceber porquê. Ao olhar através do vidro, reparo que ele e os argelinos olham para a esquerda e olho também. Acima do horizonte está o sol, já completamente erguido sobre as montanhas. Devido à areia que cobre sempre a linha do horizonte, pode olhar-se para o sol directamente para se ver um círculo cuja cor se altera gradualmente do laranja a um amarelo pálido, de baixo para cima. Nas nuvens, o amarelo expulsou quase todo o cinzento, pelo que tenho a certeza de que elas têm sabor a baunilha.
Retomamos a viagem, que está quase no fim. O sol vai-se erguendo cada vez mais sobre a areia em suspensão no horizonte e torna-se cada vez mais difícil de olhar directamente para ele. Agora, a estrada voltou a ser apenas de terra batida, e assim continuará até ao nosso destino. Quando sairmos das carrinhas para trabalhar e começarmos a suar, já o sol assumiu a sua faceta implacável de astro luminoso e quente: as nuvens voltaram a ser feitas de água.
14/08/2007
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2 comentários:
Amigo Rui, muito me aprás ler estas tuas linhas, nessa aventura pelo Norte de Africa! Leio e penso o que estou aqui parado a fazer em Portugal, com meio mundo para descobrir!
Pah, desejo-te a melhor experiencia que poderes retirar daí!
Um abraço deste colega da A17!
Nuno Domingues
Grande Damásio!
Soube há pouco, pelo Jonas, da existência deste blog. Quando cá cheguei, confesso que me assustei com as proporções dos posts, mas lá ganhei coragem para os ler, e comecei por ordem cronológica. Logo no 1º post, fiquei colado, li tudo -- quase sem respirar -- até este último. Muito bom! :)
Por favor continua com as histórias, conversas, detalhes (principalmente os 'de merda', que são os melhores), como só tu os sabes contar. Cá estaremos para os ler com sofreguidão!
Grande abraço, e boa sorte!
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