14/08/2007

O técnico informático

Por ficar a uma grande altitude, Tamanrasset apresenta um clima mais ameno do que aquele que se espera encontrar num deserto. Apesar de as temperaturas serem altas no verão, as noites de inverno são bastante frias. Agora, em Agosto, é altura de chover bastante nas Montanhas Hoggar.

No escritório, ao fim da tarde, o atarefado Bruno pede-me para ver se o nosso chauffeur de serviço está no estaleiro: é preciso levar a casa um técnico informático de Tamanrasset que veio instalar um novo computador no gabinete da administração. Vou averiguar, respondo-lhe que o chauffeur saiu há 15 minutos. O Bruno está atrapalhado num telefonema interminável, pelo que me ofereço para levar o informático a casa.

Saímos do escritório para um crespúsculo nublado. Agosto é altura de chuva nesta região e já choveu hoje. Espero que não chova novamente: complica o trabalho, enche as oueds de areia, deixa tudo sujo tal é o pó. Entramos na carrinha e começamos a conversar sobre as diferenças culturais que vemos um no outro, tema de conversa recorrente entre todos os argelinos e portugueses. Acabamos inevitavelmente por falar da língua. A língua oficial da Argélia é o árabe, mas o francês é amplamente utilizado: ele confirma-mo, embora diga que o inglês começa a ser cada vez mais instituído aos mais novos. Comenta que deve ser difícil para nós habituarmo-nos à língua, ao que eu lhe respondo que, apesar de muitos portugueses que aqui estão terem vindo cá sem falar uma palavra de francês, conseguiram desenrascar-se devido à necessidade, que é a mãe da invenção. Discuto com ele os significados de algumas palavras, e vamos assim conversando, agora apenas sobre línguas, enquanto ele intercala as suas observações culturais com as direcções da sua casa, que fica nos arredores da cidade. Viro à esquerda na primeira rotunda e sigo sempre em frente.

O técnico informático é um rapaz novo, aloirado, que creio ser do norte do país e pouco mais velho do que eu. Não tem vestes de tuaregue nem fala um francês difícil de entender, duas características da maioria dos habitantes de Tamanrasset. É afável e humilde, fala pausadamente para que eu o entenda e sorri: é simpático.

Tamanrasset não é assim tão grande, mas temos de andar um bom bocado para chegar ao destino. Apanhamos a hora mágica de todas as cidades, aquela em que os candeeiros da rua se acendem e iluminam algo que ainda não é noite mas também já não é dia. Ainda por cima hoje o céu está carregado: espero que não chova outra vez, tudo fica mais escuro, excepto o céu que assume um branco sujo. Passamos por uma rua repleta de lojas - fruta, roupa, souvenirs, telemóveis, peças de automóveis -, que começam a iluminar-se por dentro também, que depois de um bocado passa a estar ladeada por dois muros que não deixam ver para o outro lado: o muro da direita tem pinturas de livros, microfones, calculadoras e outras coisas mais que me levam a perguntar ao informático se aquilo é uma escola. Responde-me que é um instituto de formação, e que por trás do muro da esquerda está um liceu. Ainda me surpreendo quando vejo infra-estruturas assim numa cidade como esta. Viro novamente à esquerda sob instrução do rapaz.

A cidade termina abruptamente e continuamos sempre em frente numa estrada que rasga a paisagem de pedra durante umas centenas de metros, acompanhada por postes de electricidade. Ao fundo, do lado direito, antes do horizonte do céu carregado (espero que não chova mais hoje), vê-se um bairro pequeno, erguido no meio de coisa nenhuma, ocupado por casas construídas num tijolo castanho que combina com os tons terrosos da paisagem. As casas não têm revestimento e o seu aspecto é inacabado: vê-se o tijolo, vêem-se os pilares, vêem-se os varões de aço verticais no topo das casas, como se estivessem à espera de um segundo piso que nunca virá. Apesar dos postes de electricidade, os candeeiros deste bairro não estão iluminados. O pouco dia que ainda resta permite-me ver as ruas cobertas de lixo e o aspecto já gasto – destruídos pelo tempo e pelo clima - de lares que nunca chegaram a ser novos.

O informático diz-me para cortar à direita, numa pequena estrada de terra batida que continua umas duas centenas de metros até chegar ao bairro isolado. Avançando um pouco pelas ruas poeirentas percebo a pouca solidez das casas, a escuridão deste sítio à noite, o pó que nesta zona se levanta do chão para sempre quando é tocado, a grande quantidade de lixo pelo chão. O rapaz informa-me de que chegámos ao seu quarteirão e diz-me que posso parar. Despedimo-nos, ele agradece sorrindo, eu chamo-lhe mon ami a sorrir também. Dou a volta e sigo o percurso inverso, não sem antes olhar para ele a desaparecer por uma rua qualquer. Vejo as luzes de Tamanrasset à frente e comparo-as com a imagem escurecida do retrovisor que desaparece à primeira curva.

E eu espero ardentemente que não chova mais hoje.

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