30/09/2007

Mil novecentos e troca o passo

Quando o traçado de uma estrada se quer mais alto do que o terreno natural, é preciso construir um aterro. Para isso, vai-se buscar o material para aterro - que é o próprio solo - a sítios onde ele existe com características e quantidades adequadas, cujo nome técnico é 'zonas de empréstimo'. Apesar de terem este nome, julgo que até hoje ninguém devolveu o solo "emprestado", retirando-o da estrada e colocando-o novamente no local de origem: de qualquer forma não há problema porque também não é sujeito a juros.

Quando o Abduljabar, o técnico de laboratório argelino, foi à carrinha buscar o estudo das zonas de empréstimo ao longo do traçado, nunca pensei que se tratasse de um documento com quase trinta anos. Porém, não seria de esperar outra coisa, porque o próprio projecto da estrada tem a mesma idade. Estávamos em pleno deserto, numa zona vasta praticamente plana onde só se vêem montes castanhos ao longe separados da planície de areia por uma linha do horizonte azul, tremeluzente e aquática: miragens, da cor do céu. Como acontece vulgarmente, fazia um vento forte, que, para além de tornar complicado folhear as páginas do caderno antigo e descobrir nele a informação pretendida, fazia tremer o boné azul do Abduljabar.

O documento estava demasiado branco e bem conservado para pôr de parte a hipótese de ter sido fotocopiado em boa hora para evitar desintegração. O seu conteúdo, porém, revelava a sua antiguidade: cada zona de empréstimo era representada numa página por um esquema altamente dúbio constituído por uma linha recta (o traçado da estrada), um pequeno marco quilométrico estilizado, um desenho rudimentar das montanhas que se podiam ver naquela área e um polígono delimitador da zona de solo adequado para construir aterros, com a respectiva distância à estrada. No sítio onde estávamos, descobrir a localização exacta do polígono no terreno pareceu-nos uma tarefa quase impossível: o único ponto de referência credível era o marco. Mais impossível nos pareceu ainda quando o Abduljabar nos disse que os pontos do polígono estavam assinalados no terreno.

Lembro-me que, ao ouvir isto num francês gritado com força superior à do vento, olhei em volta para tentar perceber o que havíamos de fazer. A região pareceu-me ainda mais plana e ainda mais incaracterística. Só algumas pedras negras rasgavam a superfície arenosa e a monotonia da paisagem: assinalados como?

Ao seguirmos o técnico argelino, que tentava orientar-se pelo desenho e impedir o voo do boné e das páginas fotocopiadas (de certeza que fotocopiadas), apercebemo-nos de que ele procurava qualquer coisa nuns pequenos montes de areia e pedra, pouco visíveis à distância. Segundo ele, havia qualquer coisa ali que assinalava os pontos do polígono que tinha no esquema altamente dúbio do caderno. Fomos seguindo o Abduljabar à medida que ele se dirigia para os montinhos que detectava à distância para os sondar com uma pá.

Os montinhos não se distinguiam bem à distância devido à sua pequena dimensão. A areia e pequenas pedrinhas que os constituíam não destoavam do resto da paisagem. Alguns eram formações naturais, outros talvez feitos por alguém para criar pontos de referência, como é comum: por todo o percurso de Tamanrasset até In-Guezzam há montes de areia e pedras que assinalam o trajecto e mostram o caminho. Talvez devido a isso, eu estava céptico relativamente aos montes. Pelo menos até o Abduljabar, vencendo o vento no que diz respeito às páginas e ao boné, ter encontrado um papel sob uma pedra num destes montinhos.

Era um papel grosso, que parecia ter sido arrancado de uma embalagem de qualquer coisa à laia de improviso. Alguém tinha escrito nele a lápis, há quase trinta anos, que aquele montinho correspondia ao quarto ponto do polígono da décima quarta zona de empréstimo. Depressa pensei que aquele papel e aquela informação de grafite era, muito provavelmente, mais antiga do que eu. E tinha subsistido, perfeitamente legível, ao vento que rouba fotocópias e bonés durante todo esse tempo apenas com a ajuda de uma pedra. Surreal e mágico: resistiu mais impunemente aos anos do que eu e, certamente, do que quem o colocou ali. Como uma cápsula do tempo, só que sem cápsula.

Foi por isso que, antes de partirmos em busca dos restantes montinhos, reslovi tirar uma fotografia ao papel. Pedi a alguém para me segurar no papel e tuca. Achei curioso, interessante e bizarro e por isso tuca. Tuca porque assim, mesmo que o vento leve os bonés, as fotocópias (é tão certo que fotocópias) e os papelitos, terei a certeza de que estes tempos que passo aqui ainda estarão num sítio qualquer perto de mim (e se calhar também faço um esquema altamente dúbio para os conseguir encontrar) daqui a mais uns trinta anos.

3 comentários:

Anónimo disse...

Gosto do que escreves e da maneira como o fazes, continua existe alguém deste lado que gosta de ler.
obrigado

Anónimo disse...

Viva sr eng/escritor!
Ha coisas interessantes/ curiosas , não há!!??...
Estamos sempre a aprender! A vida e a experiencia dão-nos sempre lições!...
Nem tudo é mau no deserto, tab tem destas curiosidades e ensinamentos!!...
É bom estar ai alguem com essa capacidade, para nos enriquecer com conhecimentos, ainda que vindos da areia! Força!

Francisco disse...

Já se começa a notar um ambiente tenso por estas bandas, a população está ávida de notícias! Sei que o trabalho de engenheiro é viciante, mas larga lá esse trabalho por um bocado e escrever mais umas coisinhas aqui pró pessoal. Abraços!