06/08/2007

Last night on Earth

O medo de não aguentar o desafio, de atirar a toalha ao tapete, de regressar antes da sensação do dever cumprido por um motivo qualquer ou de existirem imprevistos que impeçam esta experiência da forma que a romanceio (tanto quanto se pode romancear sobre algo que se desconhece), todo esse medo quase me levou a não escrever isto. Tanta ansiedade poderá vir a parecer ridícula quando já tiver passado muito tempo, quer ultrapasse o desafio quer não. Aliás, parece-me ridícula agora: esta semana dormi sempre mal e hoje, véspera da partida, decidi nem sequer me deitar, porque sei que será escusado tentar pregar olho. Mas neste momento não há nada a fazer, estou nervoso e pronto, por isso resolvi vir para a cozinha escrever isto. Creio que é má ideia, porque o meu estado de vigília é tão artificial que não conseguirei escrever nada que preste. Travo muitas vezes a caneta, paro de dar ao dedo e olho para as paredes, ouvindo o silêncio da chuva miudinha lá de fora, do frigorífico e dos ponteiros do relógio com dinossauros coloridos, ornamento da cozinha que sempre funcionou bem sem se atrasar nem precisar de pilhas. Parto por volta das 11 da manhã: Lisboa-Paris-Argel-Tamanrasset.

Conheço o suficiente de mim para perceber que tanta ansiedade se deve ao facto de eu, no fundo, estar seguro de que levarei tudo até ao fim, se depender de mim. Por outro lado, sei que já estão mais colegas meus em Tamanrasset há vários meses e que, para além de provavelmente não se terem ralado tanto como eu antes da partida, estão a conseguir aguentar-se. Os que lá estão, pelo menos: já muita gente desistiu. O recorde de menor permanência é uma semana.

De qualquer forma, esta ansiedade faz-me sentir absurdo e pequenino por dar a isto tanta importância. Será assim tão importante? Estarei a sobrevalorizar isto? Paro de escrever, olho novamente para as paredes, ouço a chuva, o frigorífico e o fiável relógio dos dinossauros e divido-me entre o que me diz o cérebro e o que me sussurra o umbigo. Para o cérebro, sou apenas mais uma pessoa entre tantas, mais um dente na engrenagem, por amor de Deus, não sou uma estrela, não sou um mártir, não sou um aventureiro. Já o umbigo garante-me que será uma experiência única e enriquecedora: claro, ou não fosse a sua tarefa afagar o ego e procurar confortá-lo. Talvez ele não perceba o argumento do meu cérebro, que afirma por sua vez que a busca de experiências novas e extremas, moda actualmente visível nas sociedades de monotonia rotineira, fartura e hedonismo, mais não é que um capricho.

Quando as vozes do cérebro e do umbigo se transformam em zumbidos permanentes e me começam a impedir de ouvir a chuva, o frigorífico e o rigor do relógio dos dinossauros como deve ser, irrito-me e mando-os calar:

- Até têm razão, mas eu vou lá para trabalhar.

Calam-se. Não foi preciso muito. Mas é a verdade: as únicas coisas importantes são trabalho, empenho e eficácia. E isto não será a história de uma viagem. Não será a história de uma aventura. Serão apenas notas minhas que quem quiser poderá ler. Não tenho responsabilidades para comigo, apenas com o trabalho. Por isso cala-te cérebro, cala-te umbigo, calem-se os dois. E chega de falar de mim, porque a verdade é que este texto surgiu apenas graças à insónia: devia era estar na cama em vez de estar sentado à mesa da cozinha a ouvir a chuva, o frigorífico e o relógio dos dinossauros coloridos, espantado com a exactidão das batidas dos segundos. A chuva: tem sido um verão pouco convicto, este. O frigorífico: levanto-me e vou comer qualquer coisa. O relógio: são quase horas, devia ter feito um esforço maior para dormir.

Pouso a caneta. Espero que a viagem amanhã corra bem: ficaria descansado se os dinossauros me garantissem que sim, porque estes dinossauros da minha cozinha têm sempre razão.

4 comentários:

Hiperlouro disse...

Vai pelos dinossauros! São velhos sábios e por isso têm sempre razão!
Se não acreditas, lembra-te da história da pérola e verás!

Espero que a viagem tenha corrido bem e que estejas bem instalado!
Vai dando notícias!

Abraço deste velho companheiro!

Unknown disse...

Bem, depois de ler estas tuas palavras que demonstram exactamente o que estás a sentir(ou pelo menos temtam)...

Espero mesmo que não sejas mais um daqueles que desistem e que aproveites este desafio ao máximo.

Desta Hidraulica (Andreia)

Anónimo disse...

incrivel a forma como consegues explicar um pensamento tão complexo, mas no entanto perfeitamente natural. vou ficar colado ao blog, já tá na barra dos favoritos :)

desejo-te tudo de bom. um grande abraço

Anónimo disse...

Adoro ler o teu blog :)
Através de cada palavra parece que conseguimos sentir exactamente o que te vai na alma. É demais :)
o meu pai diz que o teu avô tem um diário desde que se lembra, se calhar este gosto e jeito pela escrita já vem dai :)

Qt á estadia só te posso dizer: VAIS BRILHAR E TRIUNFAR :)

Beijoquinhas grandes da primita Ana Cruzeiro