Ao meu lado na carrinha seguia o Belaissa, velhote bonacheirão que nesse dia acabou de trabalhar mais cedo devido a uma avaria na sua máquina e decidiu acompanhar-me nas minhas andanças pela obra. A certa altura, pergunta-me a quantos metros de profundidade vai o furo. Respondo-lhe que vinte e cinco. Faz um ar espantado, como qualquer vedor que se preze, e não fala mais no assunto.
Durante alguns dias levei comigo três operadores de máquinas argelinos na viagem para a obra: Belaissa, operador de giratória, Hamza, operador de motoniveladora, e Bouguessa, operador de bulldozer. Nos primeiros dias íamos calados, talvez por causa do sono normal àquela hora da madrugada, talvez por causa do nosso desconhecimento quase geral da língua francesa, talvez por eu lhes ser ainda estranho na altura. O facto é que, a pouco e pouco, fomos começando a conversar.
Não é tarefa fácil conversar com eles. O Belaissa e o Hamza só falam árabe, praticamente. Era o Bouguessa quem traduzia para francês o que eles diziam num árabe polvilhado de francesismos. Como os meus conhecimentos da língua francesa também deixam muito a desejar, recorria a pequenas expressões francesas que todos os argelinos conhecem: ‘pas de problème’, ‘doucement’ e ‘comme ça’, para citar as mais simples. Utilizava expressões novas que o Bouguessa dizia, que já sabia que as compreenderiam quando eu as usasse, e lá nos fomos entendendo. Fui aprendendo algumas palavras simples em árabe por cortesia do Belaissa, que fez trave-mestra em me ensinar qualquer coisa da sua língua. Sempre que eu lhe dizia que não conseguia decorar todas as expressões que ele me ensinava, ele sorria e dizia:
- Doucement, doucement – que, em árabe, é algo como ‘bechuia, bechuia’.
E passávamos assim as viagens de ida e volta. Fomos começando a conhecer-nos e agora damo-nos bem. Apesar de já não ser eu a levá-los e de passar menos tempo com eles, cumprimentam-me efusivamente quando me vêem. O Belaissa já me dá dois beijos: os homens árabes cumprimentam-se com dois ou quatro beijos, consoante o grau de intimidade. Rio-me bastante com o Bouguessa que, como dizem alguns portugueses, combina na perfeição com a máquina que conduz, por ser grande e desengonçado.
Um dia convidaram-me para ir ao dormitório deles, onde me mostraram vídeos musicais de um miúdo cantor, que tinha quinze anos de idade e um boné da Puma na cabeça. Pelo que constatei, esse miúdo é um artista relativamente conhecido no Magrebe: o primeiro vídeo que vi foi filmado num salão qualquer em Marrocos. Nele, o jovem músico cantava em dueto com uma rapariga da sua idade e ia-se abraçando a todos os músicos excepto ao baixista. Senti a diferença cultural entre nós acentuar-se quando me apercebi de que não conseguia gostar das músicas do rapaz – que tinham todas o mesmo efeito de alteração da voz da canção ‘Believe’ da Cher – e de que não me conseguia abstrair da fraca qualidade dos vídeos, em que algumas cenas se repetiam várias vezes ao longo da peça. E, naquele momento, senti-me incapaz de apreciar este aspecto de uma cultura diferente: seria apenas uma questão de gosto pessoal ou uma barreira interpretativa criada pela sociedade ocidental de onde venho? Vá-se lá saber. No entanto, vejo os meus colegas portugueses tão integrados aqui, vivendo como se sempre tivessem pertencido a Tamanrasset, que concluo que é uma questão de tempo até me habituar também. Primeiro, porque em Portugal também há bonés da Puma. E depois, porque – e já que esta obra é de uma estrada – “o tempo é o melhor cilindro”, palavras do nosso técnico de laboratório. Ou como diz o Belaissa:
- Doucement, doucement.
26/08/2007
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3 comentários:
Ha bem pco tempo comecei a consultar o blog !
Estou espantado com a capacidade descritiva,observaçao do pormenor!entusiasma mesmo!
Parabens sr. engenheiro/escritor!
Continue e mta Força!!!
Olá Sr.Engenheiro!
Estás a ver como não sou a única a comentar os teus dotes para a escrita?
Beijocas da tua ex-companheira de infortúnio barreirense
Já te acompanhei até a entrada em Setembro. Guardo o resto para depois, tenho de sacudir a poeira, limpar o suor e voltar a portugal-dos-pequeninos.
Volto em breve.
Se mantiveres a tua forma de olhar as coisas, estou certa de que manterás também os pés em solo argelino. Pelo menos, até ver...
Bom trabalho!
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