
Mandei parar o António, que passava a meio da manhã pela frente de obra a caminho do estaleiro de In-Guezzam. Eu ainda não o tinha visitado, pelo que lhe pedi para me mostrar o caminho: consta que para lá chegar é preciso estar atento aos poucos pontos de referência que existem e não convém mesmo nada tentar lá chegar sozinho pela primeira vez, sem se conhecer o percurso, sob risco de se acabar perdido. O António concordou e eu fui atrás dele na minha carrinha, seguidos pelos dois jipes da
gendarmerie que o estado argelino fornece como escolta. Segui-lo não foi tarefa fácil porque ele anda muito depressa e, com a grande quantidade de pó que os carros levantam, é preciso manter uma distância considerável ao veículo da frente para se conseguir ver alguma coisa. Mas bem ou mal lá o fui seguindo. Passámos o ponto mais a sul que eu conhecia até à altura, o sítio onde está o esqueleto de um carro amarelo que, por ser um objecto invulgar e saltar à vista, se tornou uma referência para quem passa por aqui: tuaregues, argelinos, contrabandistas e portugueses chamam-lhe ‘
le taxi jaune’.
Verifiquei que, com efeito, o percurso desde o início do nosso troço da estrada até ao estaleiro de In-Guezzam é complicado para quem não o conhece. É uma planície de areia a perder de vista, e mesmo os montes de pedra que são frequentes mais a norte surgem apenas de raro em raro no horizonte e mesmo assim só se vêem se o dia estiver limpo de poeira. Naquele dia, não era o caso: O horizonte estava completamente oculto pela areia em suspensão no ar, e a única coisa que se via era o chão, que se transformava gradualmente num céu acastanhado uma centena de metros à nossa frente. As únicas referências do caminho são uns arbustos e umas árvores (poucas) que mostram o percurso para sul: existe esta vegetação devido a uma oued que a vai regando esporadicamente.
Ao fim de alguns quilómetros, talvez trinta, vêem-se “as mamas”, duas montanhas que servem de confirmação de que se está no caminho certo. Poucos quilómetros depois desses montes fica o estaleiro novo, de onde vai ser dado apoio directo à obra, por a estrada passar lá ao lado. As condições ali são piores do que no estaleiro de Tamanrasset por culpa do clima. Faz muito mais calor – os colegas que o estão a construir já registaram 52 graus – e há imensas tempestades de areia devido ao vento fortíssimo.
Ao sair da carrinha comprovei na pele aquilo que se adivinhava através dos vidros: calor e pó imensos. Não se via o sol, e grande parte da sua luz não atravessava a nuvem de areia que cobria tudo. O calor, esse, fazia-se sentir: não se estava bem em lado nenhum, só dentro da carrinha com o ar condicionado ligado.
Depois de fazermos o que ali fomos fazer, incluindo almoçar no refeitório, o António levou-me até à pedreira que vai extrair pedra e fabricar as misturas betuminosas a aplicar na estrada. Fica perto, a cerca de 3km do novo estaleiro. Com o tempo fechado como estava, não se via a mancha clara das rochas, mas ao chegarmos perto consegui ver as línguas de pedra branca azulada a rasgar a superfície da areia que nesta zona está coberta de pequenos seixos. No cimo dos montes, pedras negras. Na planície, pedras brancas. Uma paisagem invulgar: bucólica, vá. A pedreira ainda estava em construção. Máquinas, contentores e peças enormes, tudo espalhado pelo solo, por entre as rochas, sob um céu daqueles, é uma imagem de desolação que a princípio nos cativa e depois nos desencanta. A pedra branca será extraída e utilizada como agregado nas misturas betuminosas.
Aqui, instruímos dois argelinos condutores de pesados para levarem os respectivos camiões, já carregados da pedra branca azulada, a uma outra pedreira que existe mais a norte. O objectivo era transformar esta pedra em brita para se ensaiarem as características do material e, como a nossa pedreira ainda está em fase de construção, iríamos britar a pedra nessa outra pedreira argelina. O problema é que as pessoas que já lá tinham estado não se lembravam muito bem de onde ficava. O Carlos, colega topógrafo que encontrámos na nossa pedreira a fazer um trabalho qualquer, já lá estivera duas vezes e recordava-se vagamente do local exacto. ‘Vagamente’, no deserto, não chega: não há grandes pontos de referência para nos guiarmos, e é fácil perdermo-nos. No entanto, como qualquer topógrafo que se preze, o Carlos estava munido de um aparelho GPS, o que nos permitia aventurarmo-nos sem risco de nos perdermos.
Ele sabia que o caminho para a pedreira argelina começava no táxi amarelo. Seguimos então a estrada para norte até o encontrarmos, e depois virámos para oeste. Conduzimos nessa direcção uma vintena de quilómetros, com o Carlos a liderar o grupo. Era uma caravana engraçada: três carrinhas Toyota, dois camiões e dois jipes da polícia. Ao fim dessa vintena, o Carlos parou e informou-nos de que a pedreira não era por ali. Marcou o sítio onde estávamos no GPS, disse aos camiões e aos jipes para esperarem ali e partiu comigo e com o António. Graças ao GPS, pudemos andar às voltas à procura da pedreira sem corrermos riscos. Ao fim de algum tempo atrás das línguas de pedra branca azulada que nos iam aparecendo, encontrámos a pedreira. Ficava a poucos quilómetros do sítio onde tínhamos parado. O Carlos marcou a localização da pedreira no GPS e partimos para ir buscar o resto da caravana.
Quando regressámos à pedreira fomos recebidos, ao entrar, por vários homens surpreendentemente alegres apesar da sua condição de isolamento. Bom, talvez não seja tão surpreendente assim: sei lá há quanto tempo estão eles ali, sem ver caras novas. Um dos homens ria-se por tudo e por nada e apertava-nos a mão sempre que sorríamos. Aceitou britar a nossa pedra para levarmos seis sacos dela: bom negócio, uma vez que recebeu um carregamento de pedra à borla e só nos deu seis sacos. Agora que penso nisso, talvez isso também explique em parte o seu bom humor.
Depois das despedidas efusivas dos argelinos da pedreira, saímos de lá com a brita. Fizemos o caminho de regresso ao táxi amarelo e seguimos para Tamanrasset. Anoiteceu entretanto, e já era completamente escuro quando chegámos ao estaleiro, ainda suados e cobertos do pó branco da britagem.
Em dias assim o jantar sabe bem.